Parece-me
que desde sempre a humanidade cultiva a impressão errada de que apenas as
ciências físicas, naturais, matemáticas sejam, de fato, dotadas de genuíno caráter
científico, o que se deve ao método e à linguagem que adota.
A
rigor, acredito que duas características atribuídas a essas ciências ajudam a
conformar o caráter que lhes é atribuído: a questão da Prova obtida em experiências repetidas
e controladas em laboratórios e a questão da imparcialidade do cientista ou
pesquisador. Ambas ajudaram e ajudam a sustentar o Mito do Método que as privilegia.
Embora
sejam apenas mitos, como o da evolução linear e progressiva dos avanços
científicos, ao estilo da colocação de tijolos em uma construção que se ergue
por etapas, à la Popper, em contraponto
à visão dialética e evolutiva das revoluções de Kuhn.
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Tal
convenção, e visão de mundo, transforma as ciências sociais em falsas ciências,
meras representações ideológicas, postura contra qual se insurgiu o grande pensador
Chico de Oliveira, para quem o conteúdo ideológico resultante de distintas cosmovisões
e interesses sociais diversos é que permitiriam dar cientificidade à análise de
uma realidade multifacetada.
Procurando
fugir do estigma ideológico nela impregnado por ser a ciência social que é, sem condições de repetição de experimentos
sob controle; e onde o cientista pesquisador é privado de isenção e
imparcialidade por ser, simultaneamente, sujeito e objeto da análise, a ciência
econômica procurou aplicar, por imitação ou disfarce, o método e linguagem das
ciências naturais.
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Como
André Lara Resende denuncia em Camisa de
Força Ideológica: a Crise da Macroeconomia, autor e livro de que extraio alguns
dos conceitos aqui destacados -, para escapar das amarras ideológicas a Ciência
Econômica (e seus representantes) elaborou todo um esquema de conceitos para
criar a falsa impressão de neutralidade científica e imparcialidade de análise.
Tal
esforço não teve êxito, como o demonstra a macroeconomia cujo objetivo é apenas
o de “ cumprir o papel ... de restringir e direcionar o poder estatal ... em
benefício (de poderosos grupos de interesses) do capitalismo financeiro”; ou a “teoria
monetária, ... que sempre teve como
objetivo restringir o poder estatal em expandir o crédito e criar poder aquisitivo”.
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Para
atingir seu objetivo, cultiva-se outro bezerro de ouro, a falaciosa “exigência de equilíbrio anual das
contas públicas, (que trata indistintamente) ... gastos correntes e os gastos
de investimento,” de forma a paralisar “a imprescindível atuação do Estado
(impedindo-o de agir) ... em prol do interesse público como do bom
funcionamento do setor privado”.
No
estágio atual de capitalismo financeiro em que vivemos, restringir o poder do Estado exige
limitar sua capacidade de dar crédito - a
partir do nada – e expandir o poder aquisitivo da economia. “Limite que é
necessariamente um limite político.”
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Cientes
de que i) o Estado não necessita de poupança prévia para criar crédito (dinheiro);
ii) tanto o dinheiro como o título representativo de dívida pública emitido pelo
Estado são dívidas públicas; iii) a dívida pública é tanto um passivo do Estado
quanto um ativo do setor privado; iv) a inflação só é provocada pela criação de
crédito/dívida pelo Estado se esta criação superar os limites de recursos ociosos
ou potenciais em condicões de serem
disponibilizados à produção; ENTÃO, CADA VEZ MAIS para restringir a “faculdade do Estado dar
crédito e expandir o poder aquisitivo na economia” os interesses privilegiados -
do capital financeiro- passam a empregar um novo conceito destinado à “adoção de um limite superior para relação dívida/PIB”.
Curiosamente,
os que defendem restrições ao endividamente público são os portadores dos
títulos, agentes privilegiados que não demonstram
essa mesma preocupação com a expansão do crédito, especialmente quando esse crédito
é criado pelo sistema bancário.
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Como
a maior parcela de poder aquisitivo em circulação compõe-se de recursos
fornecidos pelos bancos, podemos perceber os interesses por trás de toda a
preocupação com controle de gastos públicos.
Sendo
direto: quando o Estado cria poder aquisitivo, seja pela criação de moeda ou sob
a forma de endividamento para sustentar gastos voltados à melhoria das condições
de vida da população mais necessitada, imediatamente erguem-se as vozes
críticas, atribuindo a essa política, erroneamente, a responsabilidade de ser
causa de inflação. Estas vozes silenciam-se quando este poder aquisitivo é
criado via crédito fornecido pelos bancos, crédito que lhes gera vultosos lucros.
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O
que resulta da criação pelo Estado de crédito ou poder aquisitivo é emissão de
dívida sem qualquer risco para o comprador do título. Afinal, o devedor é
também quem tem poder para criar o dinheiro com o qual liquidar a dívida.
Nesse
processo, o setor privado garante uma excelente oportunidade para aplicar seus
saldos superavitários, dada ainda a promessa de pagamento assegurado de juros, sem
qualquer risco de crédito.
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Essa
expansão de dívida ou do passivo financeiro do Estado cria uma movimento de autoalimentação
uma vez que provoca um processo de inflação
de ativos (alta de preços de ativos ou títulos) que, para ocorrer “sem que haja redução proporcional de poupança
de outros ativos privados” exige o continuado aumento do passivo do Estado.
Dessa
forma, “a responsabilidade fiscal não pode mais se restringir à exigência de
equilíbrio orçamentário na falta de limites naturais, apenas limites institucionais,
políticos definidos, para a expansão do crédito público.”
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Em
síntese: não há razão para a histeria dos
mercados, da midia ou a manutenção pelo BC de juros escorchantes, que destroem
a capacidade de crescimento da produção e renda da economia, exceto o fato de que
uma política econômica consciente e responsável voltada para investimentos em prol
da sociedade resulta em melhor e mais equitativa distribuição dos rendimentos gerados.