quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Uma reflexão - histórica - sobre a tão falada derrota da esquerda em 2020. E uma dúvida: como considerar derrotado quem não tem condições objetivas para entrar em campo?

 Interessante observar que a sociedade brasileira sempre se caracterizou por um traço bastante evidente: seu conservadorismo.

Fruto de nossa formação histórica, que excluía o cidadão comum das decisões políticas relativas a sua vida  (na época da República Velha), e da preocupação dos coronéis do interior em manter a população sem acesso à educação, tal perfil menos afeto à mudança não deveria ser causa de espanto.

Afinal, aquela era uma época em que imperava o raciocínio de que quanto mais ignorante o povo, mais fácil mantê-lo sob seu cabresto.

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Não à toa, em razão de nossas relações sociais, para dentro e para fora, Caio Prado Jr., em análise de rara felicidade, demonstrou que nossa sociedade era marcada por uma dualidade. Não aquela que opunha regiões avançadas e mais desenvolvidas, ligadas às atividades vinculadas à exportação, às regiões mais interiores e atrasadas, de produção de bens de sustento das necessidades do conjunto da população.

Sim. Antes de ser alvo de críticas, é meu dever esclarecer que a dualidade apontada por Caio Prado era datada. Tratava de outro momento histórico, o que não impede que eu a generalize, por analogia com a situação vivida no interior de nosso país, por ocasião da chamada República dos Coronéis.

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Para isso, importa reconhecer que as relações mantidas por nossos principais líderes econômicos e políticos do período, em suas relações com o exterior,  poderiam ser classificadas como de caráter liberal, avançado (para a época). Mas para tal filosofia e comportamento liberais poderem se sustentar, era necessário assumir um caráter totalmente autoritário e excludente, nas relações entre fazendeiros/patrões e seus trabalhadores/empregados.

Em síntese: a dualidade se refletia na simbiose entre um comportamento liberal para fora, e autoritário para o interior.

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Como nos informam os livros de história, os grandes fazendeiros acumulavam o poder econômico com o poder político, mantendo o povo na condição de massa de manobra, de sustentação às condições de manutenção de poder, de gado, para usar uma expressão resgatada nos tempos atuais.

Tal situação se revela pelo uso de expressões como a que menciona ‘currais eleitorais’, a que se somam o ‘voto de cabresto’, e práticas que ilustram um sistema eleitoral viciado, como a do voto de marmita; da doação do pé de botina antes e de seu complemento depois; a proibição de voto às mulheres e aos analfabetos.

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Não é estranho que para a manutenção do emprego  e até da sobrevivência, os trabalhadores das fazendas, adotassem comportamentos e até modos de enxergar o mundo, determinados ou apresentados sob a ótica das elites.

O  que os transformava em grupos de valores conservadores.

Em complemento, não nos esqueçamos do papel da Igreja, tão ou mais conservadora, não apenas em relação aos costumes, mas a todas as dimensões da vida, também ela interessada na manutenção de seu poder secular.

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Vamos dar um salto, passando por cima do processo de urbanização e da formação do setor terciário brasileiro, a partir dos anos 30, abordado por Chico de Oliveira em obra também clássica, chamando a atenção para o crescimento desse setor, por força do inchaço do setor público.

A verdade é que o processo de urbanização se acelera a partir do processo de industrialização, a partir do governo Vargas nos anos 40, intensificando-se no período do Plano de Metas de JK, dos 50 anos em 5.

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Mas, então, a atração de trabalhadores das zonas rurais para os centros urbanos e a legislação trabalhista com que Getúlio busca promover a cooptação das classes trabalhadoras para servirem de base de apoio e sustento ao seu projeto político-pessoal, vão provocar poucas alterações no modo de inserção dos menos privilegiados nas discussões políticas.

Ao impor a sindicalização dos trabalhadores por setores de atividades, e atrelar os sindicatos e a forma de financiamento de suas atividades ao Caixa da União, via Imposto Sindical, o ditador gaúcho conseguiu atrelar os interesses dos trabalhadores aos do governo e dos patrões com ele associados.

Daí a pouca combatividade apresentada pelos sindicatos e confederações representativas dos interesses dos menos privilegiados, e o surgimento do movimento denominado peleguismo.

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Em seus primeiros anos, a década de 60 vai encontrar um país completamente urbanizado e cindido por fortes sinais de insatisfação que têm origem nos trabalhadores do campo, não beneficiários do movimento de industrialização experimentado nos anos anteriores.

A tal movimento, de reivindicação de condições mais favoráveis de vida, a começar pela demanda de expansão do acesso à propriedade da terra, e de condições que permitissem o aumento da produção dos pequenos agricultores, vai se juntar uma crescente insatisfação dos trabalhadores urbanos, beneficiados apenas residualmente dos avanços econômicos do país.

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A resposta a tais movimentos é conhecida: a invasão do breu da noite e da escuridão provocada pelo golpe militar e a instauração de um período de ditadura, de 21 anos de duração.

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Do ponto de vista político, além do afastamento de inimigos reais e imaginários, por força de atos de exceção, cassações, prisões, torturas e até ‘desaparecimentos’, visando divulgar no cenário internacional,  uma falsa aparência de liberdade democrática no país, o governo resolveu adotar um sistema de bipartidarismo.

Assim, embora sem independência e autonomia, o Congresso funcionava contando com a maioria de representantes do partido oficial do Governo, a Arena, e um partido de oposição consentida, o MDB, o que lhe dá origem ao apelido de época de Ditadura Envergonhada ao período.

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Esse quadro político partidário, no entanto, não vai alterar a situação que perdurava até o momento, onde os principais partidos existentes, PSD ou UDN, eram típicos representantes dos interesses do capital e dos empresários ou fazendeiros, de cunho conservador e grande infiltração no interior do país.

Distinguia os dois partidos, a posição mais de centro do PSD, que funcionou muitas vezes como um apêndice ou aliado privilegiado de Getúlio, em contraposição a uma posição mais à direita da UDN, de vigorosa oposição a Getúlio.

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Além desses, havia o PTB, partido criado para servir de base de sustentação a Getúlio, ou partido governista.

Quando da instauração do golpe militar, os interesses dos afiliados do PTB foram, junto aos interesses dos trabalhadores rurais, os principais derrotados.

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Com a ditadura, e a formação de novos partidos, os militares viram que não conseguiriam acomodar os interesses conflitantes de seus apoiadores no interior, permitindo a formação de legendas dentro de cada  uma das agremiações. Temos assim, a formação esdrúxula de quadros de Arena 1, Arena 2, bem como de grupos do MDB.

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Ora, apenas a partir do ressurgimento político, a partir de meados dos anos 70, e da retomada dos movimentos dos trabalhadores a partir da greve geral de 78, de que Lula foi uma liderança, é que podemos falar de resgate da participação popular na política. Ao menos, de forma ostensiva.

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Isso mostra que, a rigor, apenas dos anos 80/90 para cá, podemos estabelecer alguma análise que faça sentido, sobre a influência de movimentos de contestação ou da esquerda no país.

Sempre destacando se tratar de uma esquerda cuja representatividade se dá tão somente nos núcleos urbanos mais industrializados e onde as organizações sindicais têm alguma importância.

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No interior, em geral, e apenas para manter a tradição, não havia diferença entre um político vitorioso da Arena 1, ou 2, ou do próprio MDB, cujas divergências eram justificadas por questões ou desavenças familiares ou pessoais. Quadro que se repete com a substituição da Arena pelo PDS, e que vai se prolongar depois da autorização para a formação de novos partidos.

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O roteiro de nossa vida política é suficientemente conhecido, para repeti-lo.

De Tancredo e Sarney, ainda em regime consentido;  a Collor, sustentado por um partido nanico, com discurso de conteúdo fortemente conservador e liberal; até a chegada do PSDB ao poder, cada vez mais com um discurso de cunho neoliberal, até o PT de Lula e a descoberta de mensalões e Lava (e Vaza ) Jato, condenando o PT definitivamente à execração pública, o que se assiste no país é apenas ao movimento pendular, entre os representantes do conservadorismo de um lado e os representantes de um discurso mais ao centro, nada revolucionário ou mesmo reformador.

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Pode-se arriscar a dizer que, momentos como aqueles que permitiram a ascensão de Lula, em 2002, revelam apenas a sinalização de um “desgaste de materiais”, mais típico de um alerta de que é necessário promover alguma mudança que permita ao povo algum momento de afrouxamento da pressão sobre ele exercida.

Em minha opinião, isso se dá porque, no fundo, a questão central que rege a vida da população como um todo, é ditada por um mesmo interesse, de nítida inspiração liberal: o poder do grande capital e do capital financeiro, em particular, independente de sua nacionalidade.

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Afinal, não nos esqueçamos que Lula assinou uma carta de compromisso ao povo brasileiro, e que os primeiros anos de seu primeiro mandato poderiam ser classificados, adequadamente, como de estelionato eleitoral.

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Assim, depois de tudo relatado nesse extenso texto, adotar o comportamento dos analistas da mídia, para tentar imputar uma avassaladora derrota às esquerdas nessas eleições municipais de 2020, realizadas sob a égide de uma severa pandemia, é desprezar, no mínimo, a história.

Porque a esquerda como tal, nunca foi vitoriosa em nosso país.

Ao contrário, sempre foi derrotada, pelo conservadorismo cultivado há anos junto à população.

Sua vitória, se alguma, é continuar sobrevivendo, mesmo sem condições objetivas mínimas para implantar para a população seu projeto de sociedade. 

Ou então comemorar que a extrema direita, radical foi, essa sim, completamente aniquilada nas urnas.

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