Interessante observar que a sociedade brasileira sempre se caracterizou por um traço bastante evidente: seu conservadorismo.
Fruto de nossa formação histórica, que excluía o cidadão
comum das decisões políticas relativas a sua vida (na época da República Velha), e da preocupação
dos coronéis do interior em manter a população sem acesso à educação, tal
perfil menos afeto à mudança não deveria ser causa de espanto.
Afinal, aquela era uma época em que imperava o raciocínio de
que quanto mais ignorante o povo, mais fácil mantê-lo sob seu cabresto.
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Não à toa, em razão de nossas relações sociais, para dentro
e para fora, Caio Prado Jr., em análise de rara felicidade, demonstrou que nossa
sociedade era marcada por uma dualidade. Não aquela que opunha regiões
avançadas e mais desenvolvidas, ligadas às atividades vinculadas à exportação, às
regiões mais interiores e atrasadas, de produção de bens de sustento das
necessidades do conjunto da população.
Sim. Antes de ser alvo de críticas, é meu dever esclarecer
que a dualidade apontada por Caio Prado era datada. Tratava de outro momento
histórico, o que não impede que eu a generalize, por analogia com a situação
vivida no interior de nosso país, por ocasião da chamada República dos
Coronéis.
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Para isso, importa reconhecer que as relações mantidas por nossos
principais líderes econômicos e políticos do período, em suas relações com o exterior, poderiam ser classificadas
como de caráter liberal, avançado (para a época). Mas para tal filosofia e
comportamento liberais poderem se sustentar, era necessário assumir um caráter totalmente
autoritário e excludente, nas relações entre fazendeiros/patrões e seus trabalhadores/empregados.
Em síntese: a dualidade se refletia na simbiose entre um
comportamento liberal para fora, e autoritário para o interior.
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Como nos informam os livros de história, os grandes
fazendeiros acumulavam o poder econômico com o poder político, mantendo o povo
na condição de massa de manobra, de sustentação às condições de manutenção de
poder, de gado, para usar uma expressão resgatada nos tempos atuais.
Tal situação se revela pelo uso de expressões como a que menciona
‘currais eleitorais’, a que se somam o ‘voto de cabresto’, e práticas que
ilustram um sistema eleitoral viciado, como a do voto de marmita; da doação do
pé de botina antes e de seu complemento depois; a proibição de voto às mulheres
e aos analfabetos.
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Não é estranho que para a manutenção do emprego e até da
sobrevivência, os trabalhadores das fazendas, adotassem comportamentos e até
modos de enxergar o mundo, determinados ou apresentados sob a ótica das elites.
O que os transformava
em grupos de valores conservadores.
Em complemento, não nos esqueçamos do papel da Igreja, tão ou
mais conservadora, não apenas em relação aos costumes, mas a todas as dimensões
da vida, também ela interessada na manutenção de seu poder secular.
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Vamos dar um salto, passando por cima do processo de
urbanização e da formação do setor terciário brasileiro, a partir dos anos 30,
abordado por Chico de Oliveira em obra também clássica, chamando a atenção para
o crescimento desse setor, por força do inchaço do setor público.
A verdade é que o processo de urbanização se acelera a
partir do processo de industrialização, a partir do governo Vargas nos anos 40,
intensificando-se no período do Plano de Metas de JK, dos 50 anos em 5.
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Mas, então, a atração de trabalhadores das zonas rurais para os centros urbanos
e a legislação trabalhista com que Getúlio busca promover a cooptação das
classes trabalhadoras para servirem de base de apoio e sustento ao seu projeto
político-pessoal, vão provocar poucas alterações no modo de inserção dos menos
privilegiados nas discussões políticas.
Ao impor a sindicalização dos trabalhadores por setores de
atividades, e atrelar os sindicatos e a forma de financiamento de suas atividades
ao Caixa da União, via Imposto Sindical, o ditador gaúcho conseguiu atrelar os
interesses dos trabalhadores aos do governo e dos patrões com ele associados.
Daí a pouca combatividade apresentada pelos sindicatos e
confederações representativas dos interesses dos menos privilegiados, e o
surgimento do movimento denominado peleguismo.
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Em seus primeiros anos, a década de 60 vai encontrar um país
completamente urbanizado e cindido por fortes sinais de insatisfação que têm
origem nos trabalhadores do campo, não beneficiários do movimento de industrialização
experimentado nos anos anteriores.
A tal movimento, de reivindicação de condições mais favoráveis
de vida, a começar pela demanda de expansão do acesso à propriedade da terra, e
de condições que permitissem o aumento da produção dos pequenos agricultores, vai
se juntar uma crescente insatisfação dos trabalhadores urbanos, beneficiados
apenas residualmente dos avanços econômicos do país.
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A resposta a tais movimentos é conhecida: a invasão do breu
da noite e da escuridão provocada pelo golpe militar e a instauração de um período
de ditadura, de 21 anos de duração.
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Do ponto de vista político, além do afastamento de inimigos reais
e imaginários, por força de atos de exceção, cassações, prisões, torturas e até
‘desaparecimentos’, visando divulgar no cenário internacional, uma falsa aparência de liberdade democrática no
país, o governo resolveu adotar um sistema de bipartidarismo.
Assim, embora sem independência e autonomia, o Congresso
funcionava contando com a maioria de representantes do partido oficial do Governo,
a Arena, e um partido de oposição consentida, o MDB, o que lhe dá origem ao apelido
de época de Ditadura Envergonhada ao período.
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Esse quadro político partidário, no entanto, não vai alterar
a situação que perdurava até o momento, onde os principais partidos existentes,
PSD ou UDN, eram típicos representantes dos interesses do capital e dos
empresários ou fazendeiros, de cunho conservador e grande infiltração no interior
do país.
Distinguia os dois partidos, a posição mais de centro do
PSD, que funcionou muitas vezes como um apêndice ou aliado privilegiado de Getúlio, em
contraposição a uma posição mais à direita da UDN, de vigorosa oposição a Getúlio.
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Além desses, havia o PTB, partido criado para servir de base
de sustentação a Getúlio, ou partido governista.
Quando da instauração do golpe militar, os interesses dos afiliados
do PTB foram, junto aos interesses dos trabalhadores rurais, os principais derrotados.
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Com a ditadura, e a formação de novos partidos, os militares
viram que não conseguiriam acomodar os interesses conflitantes de seus
apoiadores no interior, permitindo a formação de legendas dentro de
cada uma das agremiações. Temos assim, a
formação esdrúxula de quadros de Arena 1, Arena 2, bem como de grupos do MDB.
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Ora, apenas a partir do ressurgimento político, a partir de
meados dos anos 70, e da retomada dos movimentos dos trabalhadores a partir da
greve geral de 78, de que Lula foi uma liderança, é que podemos falar de
resgate da participação popular na política. Ao menos, de forma ostensiva.
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Isso mostra que, a rigor, apenas dos anos 80/90 para cá,
podemos estabelecer alguma análise que faça sentido, sobre a influência de
movimentos de contestação ou da esquerda no país.
Sempre destacando se tratar de uma esquerda cuja representatividade
se dá tão somente nos núcleos urbanos mais industrializados e onde as organizações
sindicais têm alguma importância.
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No interior, em geral, e apenas para manter a tradição, não
havia diferença entre um político vitorioso da Arena 1, ou 2, ou do próprio MDB, cujas divergências eram justificadas por questões ou desavenças
familiares ou pessoais. Quadro que se repete com a substituição da
Arena pelo PDS, e que vai se prolongar depois da autorização para a formação de
novos partidos.
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O roteiro de nossa vida política é suficientemente conhecido,
para repeti-lo.
De Tancredo e Sarney, ainda em regime consentido; a Collor, sustentado por um partido nanico,
com discurso de conteúdo fortemente conservador e liberal; até a chegada do
PSDB ao poder, cada vez mais com um discurso de cunho neoliberal, até o PT de
Lula e a descoberta de mensalões e Lava (e Vaza ) Jato, condenando o PT definitivamente
à execração pública, o que se assiste no país é apenas ao movimento pendular,
entre os representantes do conservadorismo de um lado e os representantes de um
discurso mais ao centro, nada revolucionário ou mesmo reformador.
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Pode-se arriscar a dizer que, momentos como aqueles que
permitiram a ascensão de Lula, em 2002, revelam apenas a sinalização de um “desgaste
de materiais”, mais típico de um alerta de que é necessário promover alguma
mudança que permita ao povo algum momento de afrouxamento da pressão sobre ele
exercida.
Em minha opinião, isso se dá porque, no fundo, a questão
central que rege a vida da população como um todo, é ditada por um mesmo
interesse, de nítida inspiração liberal: o poder do grande capital e do capital
financeiro, em particular, independente de sua nacionalidade.
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Afinal, não nos esqueçamos que Lula assinou uma carta de
compromisso ao povo brasileiro, e que os primeiros anos de seu primeiro mandato
poderiam ser classificados, adequadamente, como de estelionato eleitoral.
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Assim, depois de tudo relatado nesse extenso texto, adotar o
comportamento dos analistas da mídia, para tentar imputar uma avassaladora
derrota às esquerdas nessas eleições municipais de 2020, realizadas sob a égide
de uma severa pandemia, é desprezar, no mínimo, a história.
Porque a esquerda como tal, nunca foi vitoriosa em nosso
país.
Ao contrário, sempre foi derrotada, pelo conservadorismo cultivado
há anos junto à população.
Sua vitória, se alguma, é continuar sobrevivendo, mesmo sem condições objetivas mínimas para implantar para a população seu projeto de sociedade.
Ou então comemorar que a extrema direita, radical foi, essa sim,
completamente aniquilada nas urnas.
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