quarta-feira, 6 de junho de 2018

É preciso falar de racismo. É preciso discutir a arte.

Começo tratando de algo que parece a mim muito sério e preocupante: a reação de vários grupos à indicação de Fabiana Cozza para viver D. Ivone Lara, a grande dama do samba, no teatro.
Reação que confesso desconhecer, por ter se dado principalmente por meio de redes sociais às quais não tenho acesso.
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Motivo suficiente para que eu, como várias outras pessoas, talvez preferisse não abordar, por uma série de razões, algumas das quais bastante aceitáveis, como por exemplo, pelo fato de o assunto ter chegado ao meu conhecimento já liquidado. Já resolvido. É bem verdade, em minha opinião, da forma mais lamentável possível: a desistência de Fabiana de aceitar o papel. Desistência anunciada por meio de suas redes sociais, às quais só tive conhecimento também por jornais. Mais especificamente pelas reportagens publicadas pela Folha de São Paulo.
Ou seja, toda a informação que detenho pode ser classificada como parcial, a terceira razão para não me manifestar.
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Mas...
É preciso afirmar que a indicação de Fabiana, por familiares da figura central da peça, a que se pretende homenagear, se deve à consideração, amizade e respeito que todos reconhecem que Fabiana sempre manifestou junto à Dona Ivone, parece-me que ainda enquanto viva.
Também importa afirmar que Fabiana já gravou com destaque músicas da sambista, tendo colhido elogios. O que a capacitaria como intérprete da homenageada.
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Finalmente, D. Ivone, sabemos todos era negra. E Fabiana é filha de pai negro, ostentando pele que as estatísticas classificariam de parda.
Ok. A pele de Fabiana é bem mais clara que a de D. Ivone, o que nem impediu a amizade entre as duas, nem a indicação pela família, nem a escolha pela produção da peça para o papel.
Mas foi o suficiente para disparar um movimento que foi classificado como uma grande pressão, via redes sociais, no sentido de condenar a indicação de Fabiana. Pressão patrocinada por vários movimentos sociais que lutam em favor da causa negra.
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Críticas tantas, não às qualidades vocais ou pessoais ou artísticas de Fabiana. Mas à falta de maior quantidade de melanina em sua pele.
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Nesse ponto faço uma interrupção em relação a esse assunto, para poder repercutir o absurdo que é o número de assassinatos cometidos no Brasil em apenas um ano ano, estatística contida no Atlas da Violência 2018, elaborado pelo IPEA e anunciado no dia de ontem, terça, 5 de junho.
O Atlas revela que foram mortos no país, no ano de 2016, 62,5 ou sessenta e dois mil e quinhentas pessoas, arredondando, em apenas um ano, o que dá a média absurda de 30,3 mortes para cada cem mil habitantes. Isso apenas no ano de 2016.
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São 172 pessoas assassinadas por dia, mais de 7 por hora. Muito maior número que a mesma estatística para a Europa. Isso em um país que vende a eterna ilusão de ser pacífico, amistoso. De boa, como dizem os mais jovens...
Mais que apenas a observação a respeito da escalada da violência, já que o número vem apresentando tendência de crescimento nos anos anteriores a 2016, o que mais choca é o fato de que 71,5% dos homicídios foram de jovens, pretos ou pardos.
Apenas em relação aos negros, o Atlas revela que a média supera os 40 por 100 mil habitantes.
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Falar que a maior parte dessas mortes se dá em Estados do Nordeste ou Norte do país, é uma informação relevante. Lembrar que os números mostram a escalada justo nos anos em que a crise da economia brasileira se tornou mais aguda também pode dar alguma contribuição para o entendimento da questão.
Mas não é suficiente para explicar porque mais de 70% das vítimas são jovens. São pretos. São pobres. Pode-se até arriscar: moradores em comunidades da periferia.
Um verdadeiro e autêntico genocídio.
Do mesmo tipo que já foi colocado em prática no Brasil colônia, em relação aos negros escravos, embora isso não fosse considerado preocupante por um país que cada vez mais quer eternizar o poema de Affonso Romano de Sant'anna, que afirma que há 500 anos matamos índios e mulheres e pobres e pretos. Especialmente jovens, pobres e pretos, como eu mesmo já comentei nesse espaço em postagem de 2017.
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Ainda agora no portal UOL há uma chamada de que até 5 mil índios e estudantes quilombolas podem ser obrigados a interromperem os estudos, por força de cortes de gastos nas bolsas permanência.
O que significa apenas a manutenção, especialmente dos quilombolas, como uma categoria de cidadãos de segunda classe.
Claro, o que alcança também à população indígena.
Coisas do des-governo temer.
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Aliás, antes de retornar ao tema cujo tratamento deu início ao pitaco de hoje, devo dizer que vou voltar a grafar o nome de Temer com maiúscula. A razão é simples: um reconhecimento de que nunca vi tanta incompetência. tanta inépcia, tanta prepotência juntas, essa última travestida, como é comum em que se arvora em forte, de insegurança.
O que faz Temer a qualquer instante ou problema que surja e que ele deve administrar, correr para a farda dos soldados, para fazer  uma analogia com aqueles meninos que, a qualquer mínima ameaça, correm para a saia das mães.
Temer, além de tudo, vai sair do governo e, diga-se de passagem, investigado e sujeito à condenação. Até por não ter feito nada em seu des-governo, além de dar asa a muita imaginação quanto a abusos em relação aos cofres públicos. Seu amigo coronel da reserva, PM Lima que o diga, flagrado com mais de 23 milhões em contas bancárias, isso depois da corridinha esperta de Loures, seu menino de recados.
A esperança que nutro é a de que para ele, nem se fala, nem se aventa em qualquer concessão de indulto. O que é uma garantia para nossa sociedade.
Por tudo isso, o mais corrupto governo, superando até mesmo o de seu companheiro de partido, Sarney, passo a respeitar sua distinção - nula- e volto a grafar Temer, com maiúscula.
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Mas comecei o pitaco com Fabiana, para voltar ao assunto da reação dos movimentos negros.
Acho que eles têm sim, que fazerem toda a manifestação do mundo possível, para resguardar os direitos que sempre lhe são devidos.
Toda essa postagem mostra esse quadro, e por isso, todos esses movimentos contam com minha mais irrestrita solidariedade.
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Exceto em relação à negra, de pele mais clara, Fabiana. Que me lembra do caso que aconteceu no início dos anos 60, talvez 61 ou 62, quando os concursos de miss eram tão famosos, em todo o país e no mundo.
Naquele ano, foi eleita miss Brasil, a mineira Stael Abelha, linda morena que, conta a lenda, não desejava viajar aos Estados Unidos para disputar o título máximo de miss Universo, como nossa representante, por temer ser desclassificada, como foi. Na época, a versão é que a desclassificação se deu por ter algum traço de sangue negro.
Outra versão diz que foram ciúmes de seu namorado que a fizeram abdicar do título nacional.
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Volto a Fabiana, não por achar ridícula a manifestação, em defesa de direitos negros, contra uma negra.
Mas por que os tais movimentos que merecem meu respeito, se equivocaram.
Afinal, o que é um teatro?
Uma busca na internet diz que é uma forma de arte em que um conjunto de atores interpretam ou representam uma história. Local onde o público vai para ver.
Ver arte!
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E o que é a arte?
Da mesma forma precária, poderíamos definir como a manifestação estética, de sentimentos, emoções, que se deseja transmitir para expressar ideias, percepções, que induzam a uma tomada de consciência, etc...
Está lá no google.
Como está lá também o fato de que, na Grécia antiga, onde a mulher não era considerada pessoa, ela não podia participar das representações das peças encenadas.
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E, por isso mesmo, os atores, homens, usavam personas, máscaras, que serviam para permitir melhor compreensão de sua fala, mas também para mostrar que, dependendo da figura da máscara, uma mulher ou outra, estivesse se manifestando.
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Minha memória é falha, mas acredito que foi em Marx (não me lembro em que passagem do texto, nem de que texto), que aprendi que persona do grego era usado apenas para representação do que se desejava mostrar.
Na passagem que a memória me traz, ele afirmava que  não tratava das figuras do capitalista ou do operário, exceto como personas. Sem entrar no mérito do juízo de valor individual de cada um. Tratava-os como as máscaras do teatro grego, para expressarem a representação de interesses de um grupo social.
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Pois bem, se desde a origem do teatro, e desde a Grécia, máscaras eram utilizadas pelos atores, para expressarem diferentes pessoas na peça, não haveria qualquer problema em se usar alguém branco e de sexo masculino, para representar D. Ivone Lara, se deixado claro que se colocava aquele ator, no papel de uma mulher negra genial.
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Foi assim que, quero crer, ninguém exigiu que se proibisse a representação nos espetáculos de ópera italianos, das figuras e vozes femininas, por jovens rapazes, submetidos até à tortura: os castrati.
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Ou seja, ao agir com agiu, os movimentos negros, demonstram antes de mais nada, uma ausência de conhecimento do que é cultura. O que apenas agrava a questão do preconceito e da falta de respeito.
Respeito à arte, e sua mensagem.
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Por isso, acho que um filme de Lars von Trier, com Nicole Kidman, chamado Dogville é um primor de filme. Apenas ou até mesmo porque faz toda uma representação de uma cidade, das casas, etc. a partir de marcações a giz dos ambientes, que são apenas imaginados.
E olhe que é um filme espetacular, e dos mais violentos, na representação do que é o ser humano, a que já assisti.
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Concluo: na arte, não há necessidade de o negro ser negro, nem do homem ser homem ou da mulher ser mulher; da criança ser criança, como os Autos de Natal nos mostram bem, na representação de soldados, Maria e José e até dos reis magos, por meio de crianças.
É isso.
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Mais poder aos negros. Mais respeito. Mais dignidade. Aos jovens, aos pobres, aos que vivem nas comunidades. Mais respeito também à arte. E à denúncia a que ela pode servir, mesmo que para denunciar o genocídio contra os negros, sendo a representação dessa realidade moderna, feita por atores/atrizes brancos. Brancos, mas conscientes de que somos todos iguais.

2 comentários:

Anônimo disse...

ok

Renato disse...

Boa reflexão, professor!