O retorno de Bolsonaro ao que ele nunca deixou de ser é apenas a desconstrução, mais uma, da personagem que ele vinha procurando representar, algumas vezes com algum êxito.
No entanto, mais uma vez, como na parábola do sapo e do
escorpião, é impossível esperar que a natureza não vá se manifestar.
E a natureza do chefe do Executivo, eleito por menos de 58 milhões
de eleitores brasileiros em segundo turno (55% dos votos válidos mas tão
somente 27% da população) não é só bastante conhecida, desde os tempos em que,
ainda deputado, conseguia alguma projeção apenas quando usava o mandato popular
para agredir, fazer provocações, atacar, promover ameaças (algumas bem
passíveis de serem tipificadas como crimes), quando não elogiava o que mais
asqueroso um ser humano pode ter como elemento de seu caráter: a utilização da
força, do poder, da institucionalidade do Estado para submeter aqueles que
divergem de seus pontos de vista. Os praticantes da tortura.
***
Porque a tortura é a apropriação indevida do aparelho de
Estado, do conjunto de forças que a sociedade criou para protegê-la, contra
essa própria sociedade, de forma cruel e desumana.
Prática muito diferente daquela dos valentões e mais
preocupados em se mostrar pela força dos músculos que pela dos neurônios, como
ocorre com grande parcela dos eleitores de Bolsonaro, adeptos da luta corporal,
de sair na mão até para mostrarem toda sua pretensa superioridade e
masculinidade.
***
Mas, enquanto deputado, como cada vez vai ficando mais
transparente, Bolsonaro tinha tão somente a preocupação de praticar pequenos desvios
de conduta, atos corriqueiros entre seus pares, todos sempre em prejuízo dos
interesses republicanos e do caixa governo. Atos que o imaginário popular
aceitaria como contravenções mais que como crimes.
Na Câmara por quase 30 anos, ao que parece, Bolsonaro
preferia o anonimato do baixo clero, o aconhego de seu gabinete, evitando a
projeção conquistada pelos que sempre se preocupam em discursar da tribuna sobre
temas diversos e importantes e até mesmo a apresentação de algum projeto de
lei, produto mais visível de seu trabalho.
***
Como mostram os indícios, Bolsonaro preferia gerir os pequenos
trambiques, de notas de compra de combustíveis, ou os esquemas de contratações,
recontratações, alterações funcionais em seu gabinete, possibilitando a
montagem de um esquema de divisão de verbas, em benefício próprio.
***
No entanto, se há um fato que deve ser sempre reconhecido e
destacado, esse é a sua fidelidade. Fidelidade à família, em especial aos
filhos, mas inclusive às mulheres, mesmo ex. Fidelidade aos amigos, contratados pelo
gabinete, sem qualquer obrigação de estarem presentes, nem mesmo a de terem definido
o local em que cumpririam sua jornada.
Tamanha dedicação é que permitiu a Bolsonaro a montagem de
uma rede de apoio, capaz de lhe trazer dividendos e ganhos, muitos dos quais
impossíveis de serem objeto de identificação e rastreamento.
***
Ligado a alguns crimes e um amplo esquemas de contravenções,
sempre pela utilização de amigos laranjas, não é de se surpreender que Bolsonaro
tenha conhecido e até se aproximado de alguns esquemas mais questionáveis,
para os quais, ampliando sua teia, não teria como deixar de arrastar seus
filhos.
***
Aos olhos do público, aparecia como alguém distante do
centro de poder e dos esquemas de corrupção vultosa. Aos olhos do público, era
o político carismático, de educação e formação cultural pouco sofisticada, capaz
de declarações tão bombásticas e esquisitas, engraçadas por serem incapazes de colocadas em
prática.
***
Por trás, suas ligações o colocaram em contato com as
milícias. Com o corpo policial privado que, na ausência do Estado, se aproveita
da fragilidade de nossa sociedade, para extorqui-la.
Não creio que Bolsonaro tenha capacidade para liderar
qualquer milícia. Acho-o mais apto a servir de ponta de lança, garoto
propaganda das ideias e práticas que os grupos de crimes organizados manipulam.
***
Representando bem o papel a ele determinado, Bolsonaro recebe
em troca alguns favores, como a campanha boca a boca, a boca de urna, a ameaça
velada, a ordem do comando em relação ao voto, que não deve ser questionada, e parcela dos
dinheiros que os grupos de achaque à população, especialmente mais vulnerável
geram.
***
É ai que entram os vários depósitos feitos para pagamento de
contas de seus filhos, todos em dinheiro em espécie; ou as transações imobiliárias,
de seus filhos, escudados em prejuízos fabricados em lojas comerciais de doce sabor.
É aí que entram os cargos negociados em várias instâncias e conquistados por
meio do voto para os vários zeros à esquerda que são os seus 01, 02, 03, e suas
ex-esposas. Também elas recebedoras de muito dinheiro em depósitos em suas
contas e aquisições imobiliárias de altos valores.
***
Daí a explicação para o empréstimo de Bolsonaro a seus mais
chegados amigos e apoiadores, e os depósitos, em pagamento, que esses depois efetuam nas
contas da família, seja dos filhos, seja da atual mulher.
***
Claro, em uma situação em que se começa a desvendar essa
teia de relações de negócios, com movimentos tão interessantes de recursos, quanto estranhos, Bolsonaro percebe que o risco ao seu feudo é cada vez maior. As
investigações chegam cada vez mais próximas.
E não é por outro motivo que, nesse momento, fecha-se sobre
si mesmo e sobre sua família. Deve protegê-la como for possível. Deve conseguir
afastar das vistas do público e de sua opinião mais curiosa, sua mulher, seus
filhos, seus amigos, seus advogados, a mulher de seus amigos. Enquanto isso, usa
de seus poderes para acenar favores e cargos a todos aqueles que têm a incumbência
e até a competência legal de investigarem
as ações presidenciais mais suspeitas.
***
Nesse meio tempo, o silêncio. A mudança de postura. A usurpação
de obras de outros governos; de benefícios à população cujos valores só se tornaram
possíveis por interferência – mal vista, em primeiro momento – de outros
agentes, como os deputados da Câmara; a popularidade em alta; as viagens, as
visitas em que aparece como o tosco que é, com uma imagem (talvez cultivada)
para parecer mais próximo do homem do povo.
Nesse meio tempo, as promessas, o negacionismo, as mentiras,
ou apenas a mentira que repetida muitas vezes se transforma em realidade: a de
não devastação e existência de queimadas na Amazônia e no Pantanal.
***
O Brasil arde em chamas, de vergonha, e Bolsonaro passeia
sua estupidez risonha.
Não sem, aproveitar para passar a boiada, para
armar a população, com decretos de desburocratização que permitem a aquisição e
porte de armas em maior quantidade, de maior poder de fogo; que facilitam a
compra, utilização de armas, por força de afrouxamento de restrições legais.
Que determina o fim da marcação que permita o rastreamento da origem das armas,
etc. etc.
Tudo isso, atendendo a reivindicações, não da população mais
pacata, mas das milícias, dos representantes do poder militar nas comunidades
onde as forças de segurança preferem chegar por terceirizados.
***
Em meio a tudo isso, um repórter qualquer surge para interromper seu
sossego e se dispõe a questionar os recursos que, sem qualquer pudor se ofereceram
para irrigar as contas de sua esposa. Os depósitos que, sem explicação plausível,
seu ajudante de ordens fez a sua mulher. Pior, os depósitos que a mulher do ajudante
de ordens fez para a sua mulher.
O que poderia esperar esse repórter intrometido, curioso em excesso,
em pleno domingo no Planalto Central? Ainda mais em passeio ecumênico, que
envolvia ida à Catedral?
***
Não bastasse mais uma vez escamotear dados e agir para desmontar
estruturas de apoio a crimes que implicam violações de direitos contra
mulheres, menores, etc.
Bolsonaro tinha que voltar a ser o que sempre foi. E ameaçar
bater, “encher de porrada” quem ameaçou o recesso de seu lar, sua família, o
grupo de seus amigos milicianos.
E, pode até aproveitar para se justificar junto ao
eleitorado tipo gado que o acompanha. Afinal, com a mulher, a família, os negócios
da gente, qualquer cidadão brasileiro sabe que ninguém deve mexer.