segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Bolsonaro e o papel de grande pai. Grande líder, dedicado à família e aos amigos. Pai dos mais ingênuos e desesperançados

 O retorno de Bolsonaro ao que ele nunca deixou de ser é apenas a desconstrução, mais uma, da personagem que ele vinha procurando representar, algumas vezes com algum êxito.

No entanto, mais uma vez, como na parábola do sapo e do escorpião, é impossível esperar que a natureza não vá se manifestar.

E a natureza do chefe do Executivo, eleito por menos de 58 milhões de eleitores brasileiros em segundo turno (55% dos votos válidos mas tão somente 27% da população) não é só bastante conhecida, desde os tempos em que, ainda deputado, conseguia alguma projeção apenas quando usava o mandato popular para agredir, fazer provocações, atacar, promover ameaças (algumas bem passíveis de serem tipificadas como crimes), quando não elogiava o que mais asqueroso um ser humano pode ter como elemento de seu caráter: a utilização da força, do poder, da institucionalidade do Estado para submeter aqueles que divergem de seus pontos de vista. Os praticantes da tortura.

***

Porque a tortura é a apropriação indevida do aparelho de Estado, do conjunto de forças que a sociedade criou para protegê-la, contra essa própria sociedade, de forma cruel e desumana.

Prática muito diferente daquela dos valentões e mais preocupados em se mostrar pela força dos músculos que pela dos neurônios, como ocorre com grande parcela dos eleitores de Bolsonaro, adeptos da luta corporal, de sair na mão até para mostrarem toda sua pretensa superioridade e masculinidade.

***

Mas, enquanto deputado, como cada vez vai ficando mais transparente, Bolsonaro tinha tão somente a preocupação de praticar pequenos desvios de conduta, atos corriqueiros entre seus pares, todos sempre em prejuízo dos interesses republicanos e do caixa governo. Atos que o imaginário popular aceitaria como contravenções mais que como crimes.

Na Câmara por quase 30 anos, ao que parece, Bolsonaro preferia o anonimato do baixo clero, o aconhego de seu gabinete, evitando a projeção conquistada pelos que sempre se preocupam em discursar da tribuna sobre temas diversos e importantes e até mesmo a apresentação de algum projeto de lei, produto mais visível de seu trabalho.

***

Como mostram os indícios, Bolsonaro preferia gerir os pequenos trambiques, de notas de compra de combustíveis, ou os esquemas de contratações, recontratações, alterações funcionais em seu gabinete, possibilitando a montagem de um esquema de divisão de verbas, em benefício próprio.

***

No entanto, se há um fato que deve ser sempre reconhecido e destacado, esse é a sua fidelidade. Fidelidade à família, em especial aos filhos, mas inclusive às mulheres, mesmo ex. Fidelidade aos amigos, contratados pelo gabinete, sem qualquer obrigação de estarem presentes, nem mesmo a de terem definido o local em que cumpririam sua jornada.

Tamanha dedicação é que permitiu a Bolsonaro a montagem de uma rede de apoio, capaz de lhe trazer dividendos e ganhos, muitos dos quais impossíveis de serem objeto de identificação e rastreamento.

***

Ligado a alguns crimes e um amplo esquemas de contravenções, sempre pela utilização de amigos laranjas, não é de se surpreender que Bolsonaro tenha conhecido e até se aproximado de alguns esquemas mais questionáveis, para os quais, ampliando sua teia, não teria como deixar de arrastar seus filhos.

***

Aos olhos do público, aparecia como alguém distante do centro de poder e dos esquemas de corrupção vultosa. Aos olhos do público, era o político carismático, de educação e formação cultural pouco sofisticada, capaz de declarações tão bombásticas e esquisitas, engraçadas por serem incapazes de colocadas em prática.

***

Por trás, suas ligações o colocaram em contato com as milícias. Com o corpo policial privado que, na ausência do Estado, se aproveita da fragilidade de nossa sociedade, para extorqui-la.

Não creio que Bolsonaro tenha capacidade para liderar qualquer milícia. Acho-o mais apto a servir de ponta de lança, garoto propaganda das ideias e práticas que os grupos de crimes organizados manipulam.

***

Representando bem o papel a ele determinado, Bolsonaro recebe em troca alguns favores, como a campanha boca a boca, a boca de urna, a ameaça velada, a ordem do comando em relação ao voto, que não deve ser questionada, e parcela dos dinheiros que os grupos de achaque à população, especialmente mais vulnerável geram.

***

É ai que entram os vários depósitos feitos para pagamento de contas de seus filhos, todos em dinheiro em espécie; ou as transações imobiliárias, de seus filhos, escudados em prejuízos fabricados em lojas comerciais de doce sabor. É aí que entram os cargos negociados em várias instâncias e conquistados por meio do voto para os vários zeros à esquerda que são os seus 01, 02, 03, e suas ex-esposas. Também elas recebedoras de muito dinheiro em depósitos em suas contas e aquisições imobiliárias de altos valores.

***

Daí a explicação para o empréstimo de Bolsonaro a seus mais chegados amigos e apoiadores, e os depósitos, em pagamento, que esses depois efetuam nas contas da família, seja dos filhos, seja da atual mulher.

***

Claro, em uma situação em que se começa a desvendar essa teia de relações de negócios, com movimentos tão interessantes de recursos, quanto estranhos, Bolsonaro percebe que o risco ao seu feudo é cada vez maior. As investigações chegam cada vez mais próximas.

E não é por outro motivo que, nesse momento, fecha-se sobre si mesmo e sobre sua família. Deve protegê-la como for possível. Deve conseguir afastar das vistas do público e de sua opinião mais curiosa, sua mulher, seus filhos, seus amigos, seus advogados, a mulher de seus amigos. Enquanto isso, usa de seus poderes para acenar favores e cargos a todos aqueles que têm a incumbência  e até a competência legal de investigarem as ações presidenciais mais suspeitas.

***

Nesse meio tempo, o silêncio. A mudança de postura. A usurpação de obras de outros governos; de benefícios à população cujos valores só se tornaram possíveis por interferência – mal vista, em primeiro momento – de outros agentes, como os deputados da Câmara; a popularidade em alta; as viagens, as visitas em que aparece como o tosco que é, com uma imagem (talvez cultivada) para parecer mais próximo do homem do povo.

Nesse meio tempo, as promessas, o negacionismo, as mentiras, ou apenas a mentira que repetida muitas vezes se transforma em realidade: a de não devastação e existência de queimadas na Amazônia e no Pantanal.

***

O Brasil arde em chamas, de vergonha, e Bolsonaro passeia sua estupidez risonha.

Não sem, aproveitar para passar a boiada, para armar a população, com decretos de desburocratização que permitem a aquisição e porte de armas em maior quantidade, de maior poder de fogo; que facilitam a compra, utilização de armas, por força de afrouxamento de restrições legais. Que determina o fim da marcação que permita o rastreamento da origem das armas, etc. etc.

Tudo isso, atendendo a reivindicações, não da população mais pacata, mas das milícias, dos representantes do poder militar nas comunidades onde as forças de segurança preferem chegar por terceirizados.

***

Em meio a tudo isso,  um repórter qualquer surge para interromper seu sossego e se dispõe a questionar os recursos que, sem qualquer pudor se ofereceram para irrigar as contas de sua esposa. Os depósitos que, sem explicação plausível, seu ajudante de ordens fez a sua mulher. Pior, os depósitos que a mulher do ajudante de ordens fez para a sua mulher.

O que poderia esperar esse repórter intrometido, curioso em excesso, em pleno domingo no Planalto Central? Ainda mais em passeio ecumênico, que envolvia ida à Catedral?

***

Não bastasse mais uma vez escamotear dados e agir para desmontar estruturas de apoio a crimes que implicam violações de direitos contra mulheres, menores, etc.

Bolsonaro tinha que voltar a ser o que sempre foi. E ameaçar bater, “encher de porrada” quem ameaçou o recesso de seu lar, sua família, o grupo de seus amigos milicianos.

E, pode até aproveitar para se justificar junto ao eleitorado tipo gado que o acompanha. Afinal, com a mulher, a família, os negócios da gente, qualquer cidadão brasileiro sabe que ninguém deve mexer.

Um comentário:

Anônimo disse...

"já ir" escondeu, bravamente, aquilo que nunca deixou de ser: um bufão, que por ser incapaz de qualquer argumento minimamente razoável apela à truculência; especialmente quando coberto pelo manto do Estado, seja como deputado ou presidente.
Apesar de todas as evidências de falcatruas, o melancólico presidente da câmara dos deputados, insiste em sumariamente ignora-las e assim endossa as bravatas do chefe do executivo. E como desgraça pouca é bobagem, a popularidade de "já ir" aumentou.
O que me parece sugerir o quão carente é nossa população, tanto no plano material, quanto no plano de formação e por fim de informação. De tal forma que "já ir" vai usurpando obras de que não é autor, se apropriando de decisões que não tomou...
O que não chega a ser uma novidade na história. Todavia, no apogeu da sociedade da informação é lamentável e pavimenta, pelo menos a meu ver, para governos escrotos.
A resistência nunca foi tão necessária quanto agora!

Fernando Moreira