Às vezes, certos termos e expressões surgem em nosso ambiente e passam a se incorporar ao nosso discurso do dia-a-dia, ganhando grande destaque.
Vários deles transformam-se em autênticos modismos, ganhando
vida própria e passando a ser utilizados para expressar conceitos e ideias mais
amplos que aqueles para que foram originalmente cunhados. Quando isso acontece,
sua utilização acaba sendo identificada, muitas vezes, a grupos considerados diferenciados, mais
esclarecidos ou iluminados. Nesse caso, torna-se sinal da identificação de seu
usuário. Diria até uma senha de pertencimento a certo grupo social de caráter cult.
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Em minha opinião, a ocorrência desse fenômeno de apropriação
e ampliação do significado de um termo de origem restrita é sinal da
perspicácia, até da “felicidade” do autor de seu emprego original.
Parece-me ser esse o caso da expressão “lugar de fala” que
dá título a livro da filósofa Djamila Ribeiro.
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Outras expressões também transformadas em moda, especialmente
em razão de sua disseminação pelas redes ditas antissociais nesse momento de profunda
polarização em nossa sociedade são “cancelamento” e “lacração”: a primeira
representando mais que uma discordância de caráter profundo com opinião ou
comportamento manifestos por alguém, mas o próprio julgamento, condenação e
justiçamento da pessoa cancelada.
E pior: o cancelamento representa a tentativa de ampliar a
exposição da pessoa e suas ideias consideradas inoportunas, de forma a promover,
como no passado, uma condenação em praça pública. Hoje, uma condenação ao desaparecimento,
à invisibilidade e ao esquecimento eterno.
Situação de intolerância que eu considero dizer tanto sobre o
autor do cancelamento, quanto do autor do comportamento abjetável, criticável.
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Não que qualquer um de nós tenha que conviver e estar sendo
bombardeado com opiniões que são completamente antagônicas às nossas crenças, ideias,
educação, formação, sentimentos e até visão de mundo.
Mas, nesse caso, sempre há como adotar o ensinamento antigo,
que nos lembrava de que a existência de dois ouvidos (ou olhos) era para que as
agressões ou bobagens entrassem por um deles e saíssem pelo outro.
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Também não vejo problema em afastarmo-nos daqueles com quem
não temos afinidades e cujas opiniões apenas nos trariam desconforto, quando não
discussão. Não fazer isso seria uma autosabotagem. Coisa de masoquista.
Sem procurar induzir a quem quer que seja a adotarem comportamento
semelhante.
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Quanto à lacração, parece-me ser a expressão de aprovação e
concordância com algum tipo de pensamento que tivemos a oportunidade de expor. Mais
uma vez, sinal de identidade.
Ou sinal de uma vaidade vazia, já que restrita àqueles grupos
a que pertencemos, justamente por pensarmos e nos expressarmos de forma semelhante.
Em resumo: a lacração expressa o fato de que fomos os pioneiros
em emitir uma opinião que todos em nosso grupo compartilhavam.
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Mas, o pitaco de hoje não era para tratar de expressões tornadas
modismos. E, como ensina o dicionário, efêmeras.
No fundo o pitaco hoje era para tratar do bárbaro
assassinato, em loja do Carrefour de Porto Alegre, do Beto, o João Alberto Silveira
Freitas. Homem negro. Sinal evidente do racismo estrutural de nós brasileiros,
mesmo que tal comportamento seja insistentemente ignorado por Mourão e
Bolsonaro.
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Porque a questão crucial aqui não é se Beto deu ou não
motivo para que tentassem expulsá-lo da loja. Se ele adotou comportamento
antissocial ou não. Se estava sendo inconveniente ou não. Se estava bêbado ou
não. E ao que parece, e as imagens deixam perceber, Beto não cometeu nenhum
ato condenável.
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Uma coisa é puxar pelo braço, falar grosso. Outra bem
diferente é a união de dois homens, para covardemente se atracarem com um sozinho.
E um deles, ficar desferindo murros e socos, que respingaram sangue pelo piso,
enquanto o segundo valentão conseguia, pelas costas, desequilibrar o Beto e jogá-lo
ao chão.
A essa altura, Beto já estava dominado. E apenas um desejo
íntimo e mórbido de seviciar, de torturar, de superar a infelicidade de uma vida
limitada e sem perspectivas, seria capaz de levar dois homens brancos, a assassinarem
um negro.
Sim. Há que se desnudar a verdade evidente: fosse branco,
Beto teria levado uns tabefes, talvez. Uns empurrões e teria saído vivo do
supermercado, para ir comer o pudim de pão sossegado em sua casa.
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Alguns dias depois, postei no facebook, mensagem de pesar e
revolta contra o assassinato cruel.
Na oportunidade disse que não tinha lugar de fala. Estava
errado.
Tenho sim, lugar de fala, mesmo não sendo preto. Ou “moreninho”.
E o que me dá essa posição é o fato de ser humano. E de sentir
e testemunhar toda a injustiça, praticada contra outros seres humanos, apenas
por terem nascido com a pele de cor escura. Preta.
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É verdade que não sou eu que levo as bolachas e esculachos
dos policiais como, por exemplo, quando voltava do estádio em uma ocasião e,
no ônibus, vários de nós atleticanos comemorávamos, cantávamos, xingávamos, nos
divertíamos.
Incomodávamos outros passageiros? Certamente.
Mas, descemos no mesmo ponto, eu e vários rapazes e meninos
vizinhos meus, do morro. Por acaso todos
negros. Pretos.
E foram eles que os policiais elegeram para serem as vítimas da ação de saltar da
viatura e dar a prensa, com direito a mãos nas paredes, alguns tapões e revista.
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Aí é que está meu lugar de fala: na minha covardia. Total e
absoluta. C O V A R D I A.
Estava escuro e, à noite, todos os gatos são de mesma
tonalidade.
Recolhi-me a minha insignificância e passei pela agressão sem
me manifestar. Engolindo meu silêncio e minha vergonha.
Se atitudes de outrem, até autoridades públicas, me fazem adotar
comportamento tão deplorável, tão pequeno, por causa do racismo, como não admitir que
também eu fui afetado por essa praga?
Que me omiti, me cancelei naquela oportunidade; me calei e tive
um comportamento de um “verme”? E tudo esse fato por culpa do racismo. Saí dali sem a dor
física, dos tapões e achaques.
Mas e a dor moral? Não me assegura lugar de fala, mesmo que
relativo?
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O presidente que não temos e não governa. O general que é
vice de um nada e, assim, expressa sua insigne ficância (afinal ele é indemissível).
Nega o racismo como a pandemia. Nega o fogo que lhe queima a pele e, quem sabe, a alma...
Esse general só mostra que a formação militar, o ensino nas academias
também é mera falácia. Não existe. Como não existia e não existe em nosso país
corrupção, rachadinhas, uso de verbas públicas em finalidade distinta da sua
aprovação, e milhões e milhões de bombons da Kopenhagen, gerando a multiplicação
de imóveis. Todos pagos à vista.
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Como não existem os Queiroz e Wassafs, nem os capitães Adriano
e as milícias que sustentam o mito da paz nos morros e na periferia. A paz dos
cemitérios onde jaz, sem qualquer responsabilização penal, o corpo da mulher
negra, Marielle.
Também não existia luz no Amapá e nosso líder só apareceu
depois de 22 dias, para dar vexames em passeio de automóvel em desrespeito às
normas mais básicas de segurança no trânsito. Normas que, para ele não existem.
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O tal presidente não se manifestou sobre o depósito de 89
mil reais na conta de sua mulher. Não se pronunciou sobre a morte de Beto, não
abordou a questão energética do Amapá e não cobrou do ministro da saúde, outro
general de meia pataca em hombridade( e pataca e meia em subordinação) o porquê
de milhões de testes, caros, estão apodrecendo em depósitos sob
responsabilidade do governo federal.
Mas, tudo bem. Também o orçamento da saúde não foi gasto, em
meio à pandemia. Ou foi gasto em proporção irrisória.
Afinal, era só uma gripezinha, em um país de maricas. E
ladrões no comando do barco.
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Por fim, vamos falar de Maradona. O diez. O diós da Copa de
86. Ou não.
Como ele mesmo disse: Deus é apenas um. Ele era apenas um
jogador.
O que foi genial com a bola nos pés, Maradona também foi
como homem. Genial por se saber limitado. Com restrições. Com problemas e
comportamentos condenáveis que ele nunca escondeu.
Maradona foi um personagem trágico de um tango. Se composto por
ele ou não, não importa. Importa que a música que ele nos proporcionou e suas
reviravoltas e os versos que elas inspiraram foram tão grandes quanto sua
imagem.
Infinitas vezes maior que o Dieguito, o pequeno jogador que,
um dia, como diz o canto religioso, segurou na mão de Deus. Ganhou altura e
voou alto, para mandar a bola para as redes da Inglaterra. E restaurar todo o
orgulho de um povo de hermanos.
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Sempre fui de gostar mais dos marginalizados. Não gostava dos
mocinhos. Nas brincadeiras, optava por não ser o polícia. Respeitava os xerifes
do velho oeste, mas torcia para os Billys e outros kids iguais.
Achava o Mickey chato, e muito certinho. Preferia o Pateta.
Especialmente quando uma pancada o fez se transformar no temível Mancha Negra.
Torcia pelo gato Tom, nas escaramuças com o rato Jerry.
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Vi Garrincha ganhar uma Copa sozinho, em 1962. Vi Romário
vencer uma Copa sozinho em 94, embora com o falso brilho de uma conquista nos
pênaltis.
Mas vi Maradona jogar e ganhar, sozinho, a Copa de 1986.
E vi o gol mais belo de todas as Copas, mesmo respeitando a
majestade de Pelé, com a bola nos pés.
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Maradona foi mais por ser mais humano. Mais imperfeito. Mais
passional. E mostrar que todos nós, como ele, podemos nos destacar quando amamos
o que fazemos. E nos divertimos quando trabalhando.
Vá descansar Diego, El Pibe.