Professora de História em BH, minha cunhada Neuza Maria Costa Botelho de Melo fez o favor de me alertar para um erro que cometi no último pitaco. sobre a questão do marco temporal.
Como à moda de Sócrates, apenas sabemos que estamos sempre aprendendo ou "recordando" o que já sabíamos, e dada a gravidade do erro, optei não fazer apenas uma correção do texto original, ou um comentário tipo Erramos, mas uma nova publicação.
A questão é que os fazendeiros, proprietários dos escravos libertados pela lei Áurea, pressionaram e exigiram o pagamento de indenizações pela "perda de suas propriedades".
Não apenas a Princesa Isabel não os atendeu como, no site do Senado Federal, há a revelação de que a princesa procurava meios de indenizar aos escravos libertos, para que tivessem meios de reconstruírem suas vidas.
Esta é, inclusive, uma das alegadas razões para a instauração da República, complementada por atitude de Rui Barbosa que, queimando os documentos de registro de propriedade, impediu que se apurasse o valor de indenizações.
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Em outro site, aprende-se que, como forma de compensação, estes fazendeiros pressionaram e obtiveram a aprovação de legislação que lhes assegurava crédito favorecido para a produção agrícola.
Desta forma tiveram suas "perdas" mitigadas e têm, até nossos dias, acesso a créditos em condições favorecidas e subsidiadas.
Por fim, ganho também eu em conhecimento. E ganha a Neuza, meu muito obrigado.
Foi aprovado ontem, por nosso vetusto
Senado (vetusto não no sentido de respeitado, mas de deteriorado pelo tempo), o
Projeto de Lei nº 2 903, que estabelece, entre outras barbaridades, o marco
temporal como referencial para a demarcação de terras indígenas.
A lista das alterações contém: i)
veda ampliação de terras indígenas, demarcadas antes da definição de critérios
claros na Constituição de 88, servindo contra os interesses dos povos
originários; ii) permite questionar-se o processo de demarcação em qualquer de suas fases; iii) assegura o uso e gozo, por não indígenas da área, objeto de
demarcação até o encerramento do processo; iv) considera de boa fé toda benfeitoria
feita, mesmo depois de iniciado o processo de demarcação, assegurando o direito
à indenização; v) permite a cooperação e contratação de terceiros não indígenas para
exercício de atividades econômicas em terras indígenas, com permissão para o
cultivo de transgênicos, atividades de mineração; vi) limita o usufruto integral da terra dos indígenas, subordinando-o ao interesse da política de defesa e soberania
nacional, como intervenções militares, expansão da malha viária e exploração de
alternativas energéticas estratégicas. vii) finalmente, estabelece que a implementação será feita independentemente de
consulta às comunidades envolvidas ou à Funai e autoriza o poder público a
instalar equipamentos e construções necessárias à prestação de serviços
públicos.
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Antes de avançar, convém
esclarecer o que se entende por marco temporal. Significa que serão válidos ou “tolerados”
apenas os processos de demarcação daquelas terras ocupadas por indígenas, ou
que estivessem sendo objeto de litígio, em
5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição Cidadã, de 1988.
A razão para tal defesa é singela:
limitar a demarcação àquelas áreas em
que não houve interesse ou não foi possível ao invasor se valer do procedimento
adotado ao longo de todo período de nossa colonização, e que se valeu de
ataques, agressões e mortes, expulsão ou “convites para que os povos indígenas
se retirassem de suas terras.”
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É também simplória e ignora o
fato de as atividades produtivas dos povos originários implicarem o
deslocamento por parte do território ocupado, em uma espécie de rodízio.
Ignora as atividades que abrangiam áreas
sagradas, destinadas ao culto dos antepassados, de seus espíritos, de seus
mortos e da própria Mãe Terra. E áreas de atividades culturais e sociais:
jogos, artesanato, etc.
Nunca foi apenas por disputa de
terra e propriedades.
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Mas, a aprovação vexatória desse PL
do marco, em momento em que o Supremo Tribunal Federal já proclamara a
inconstitucionalidade de tal interpretação não é e não pode ser interpretada
como apenas uma reação desrespeitosa ao STF ou uma posição de confronto aberto
com o Poder Judiciário.
Tampouco pode ser vista como o
interesse do Legislativo de retomar o exercício de suas atribuições
institucionais, preenchendo espaços vagos, de forma a impedir que outros
poderes venham a usurpar sua função, por absoluta inação. Na verdade, a
existência de espaços sem regulação atendem aos interesses daqueles que optam pelo
uso da força ou do poder econômico ou político, ou ambos, que detém.
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O PL faz parte de uma estratégia
maior, muito mais antiga, de supressão
pelas elites e classes produtivas dominantes, de eliminação de qualquer
vestígio da existência de povos originais, tal qual aconteceu com os povos
escravizados – que se tentou embranquecer.
No caso dos indígenas, capaz de se
expressar em alto e bom som, por intermédio de um deputado autoritário, mais tarde eleito presidente, cujo
ideário ou raciocínio (se existente!) demonstra estreitas afinidades com ideias
fascistas, de defesa da eugenia e supremacia branca, e defesa da sociedade de
valores do homem branco e hetero.
Desse nazifascista, golpista fracassado
e, sobretudo, covarde, é a frase dita em discurso na Câmara do dia 16 de abril
de 1988, em que afirmava: “ Até vale uma observação neste momento: realmente a
cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria
norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse
problema no país".
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Em seu respeitado livro Justiça –
O que é fazer a coisa certa, o professor de Harvard, Michael J. Sandel (Civilização
Brasileira, 2022) dedica todo um capítulo a discutir o tema Desculpas e
Indenizações onde trata da questão: ‘Devemos pagar pelos pecados de nossos
predecessores?’.
Abordando a questão pelo ângulo do
utilitarismo, do individualismo moral e da vontade autônoma de Kant ou de Rawls,
ele advoga a existência da condição de solidariedade e de ser membro de um
grupo, de pertencimento ou solidariedade, nos permitindo concluir que, se somos
parte, somos fiéis e pertencemos a uma sociedade, devemos sim, desculpas por
tudo o que fizeram os nossos antepassados, de quem herdamos o espírito e tudo
que possuímos como grupo, hoje.
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Na contramão da ideia de Aldo
Rebelo e outros mais pobres de espírito, de que não podemos nos culpar do que
nossos antepassados fizeram, de bom ou não.
Mas, no sentido do proprietarismo tão
citado por Piketty, que obriga à indenização aos não índios que usurparam –
mesmo sem ter a intenção – terras que não lhes pertenciam. Nem com as
indenizações aos que de boa fé ocupam tais terras, meras manobras para apor
obstáculos às demarcações.
Afinal, como os africanos do Haiti
que tiveram de pagar aos colonizadores pela independência e nunca foram pagos
pelos sofrimentos sofridos; ou os afro americanos que não receberam nem os 16
hectares e o animal que lhe foi prometido, mesmo combatendo pela formação dos
Estados Unidos, também o Brasil apenas indenizou os fazendeiros que perderam sua
mão de obra escravizada.
Nunca nem os povos pretos
escravizados, nem os povos originários foram indenizados por suas terras e suas
vidas invadidas e tratadas como descartáveis.
Sem
improviso, Lula fez ontem um autêntico discurso de estadista em seu retorno à
sessão de Abertura da Assembleia Geral da ONU.
Interrompida
por seguidas manifestações de aplausos dos representantes das delegações presentes,
a fala do presidente brasileiro foi a confirmação de que o Brasil está de volta
ao cenário internacional, para “dar sua devida contribuição ao enfrentamento
dos principais desafios globais.”
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Desta
forma, o discurso foi um veemente alerta para os mais graves, principais e
urgentes desafios e problemas que devem integrar a agenda internacional e
merecerem a atenção de todos os líderes do planeta.
Com
este objetivo, Lula abordou da crise climática à questão da fome e da desigualdade;
da vergonhosa distribuição de renda e riqueza à necessidade de dedicação de recursos
e esforços conjuntos para o alcance do desenvolvimento sustentável. Da necessidade
de reformulação das instâncias de deliberação multilateral, à busca da
transição energética do planeta; do respeito às divergências e no trato das
questões identitárias, à liberdade. Da necessidade de solução de conflitos pela
via do diálogo, à crítica aos conflitos armados, alimentados pela ainda
presente corrida armamentista.
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Não
se nega que seu pronunciamento foi bastante auxiliado pela pouca disposição dos
oradores que o seguiram de ir contra o “status quo”, de utilizarem da oportunidade
para fazerem não só críticas, mas sugerirem soluções: para se permitirem pensar
fora da caixa.
A
título de se fazer um registro necessário, esse foi o tom adotado por vários
dos jornalistas e analistas políticos nos os jornais da tarde/noite de ontem.
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Mas,
além do reconhecimento da importância da fala e dos temas focados, houve também
críticas, especialmente ao tratamento considerado raso à invasão russa ao
território ucraniano.
Se
condenou de forma abstrata a solução pela força das armas, não foi enfático na
necessidade de a Rússia paralisar os ataques e agressões ao país vizinho.
Mas
confesso minha estranheza quanto ao silêncio de órgãos de imprensa, jornalistas
ou comentaristas em relação à defesa necessária da liberdade de imprensa, em especial
sua crítica ao tratamento dispensado a Julian Assange, “punido por informar a
sociedade de maneira transparente e legítima”.
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Outra
crítica ouvi, especialmente, de jornalistas ligados à maior empresa com atuação
na área de comunicação em nosso país, defensora desde sempre das chamadas
políticas de mercado, dos interesses do mercado financeiro e do neoliberalismo responsável
pela maior parte dos problemas de que Lula tratou e que mereceu seus elogios.
Para
não cometer injustiças, nem acusar a ninguém de adoção de um viés ideológico, vou
apenas destacar a limitada fonte de informações a que têm consultado, e que os
leva a declarar que Lula errou ao vincular o neoliberalismo vigente no mundo ao
crescimento das forças de ultradireita e do fascismo.
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Para
não ser acusado de me utilizar do argumento da autoridade, vou apenas citar
alguns autores e obras que demonstram cabalmente a existência do vínculo entre
neoliberalismo, o crescimento exacerbado das desigualdades e da má distribuição
de renda, a precarização dos integrantes dos grupos menos favorecidos, a
sensação de abandono e desespero desses grupos e a saída “suicida” ou
democraticida a que se voltam.
Tais
elos podem ser vistos em Capital e Ideologia, de Thomas Piketty, onde o economista
apresenta extensa pesquisa sobre as razões do crescimento das desigualdades pós
anos 80, na maioria dos países.
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Ou
ainda artigos de André Roncaglia, na Folha de São Paulo, onde examina dados da
Receita Federal para concluir, entre outras coisas, que em nosso país, “rico
empresta a juros ao Estado o dinheiro que não pagou em tributos” (Folha de 4 de
agosto de 2023, p. A32)
Como
base para as conclusões críticas extraídas
das pesquisas, a ideia imperiosa da necessidade de se zerar o déficit público e
aplicar uma política de austeridade, na busca de equilíbrio orçamentário: uma FALÁCIA.
O
link a seguir - https://www.youtube.com/watch?v=ZeUxyNH-mq0
– de debate sobre o Orçamento 2024 e o Déficit Zero promovido pelo Espaço
Plural, da Rede Estação Democracia, traz o que penso do tema.
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Mas,
em entrevista no caderno Mercado, p. A19, de domingo 17 de setembro, a Folha publicou uma entrevista com o prêmio
Nobel de Economia em 2001, Joseph Stiglitz, que dispensa apresentação.
O
professor aborda a ênfase dada pelos mercados financeiros à importância do
déficit. E afirma que “A austeridade falhou em todos os lugares como
instrumento para o equilíbrio orçamentário.”
E
explica: “Austeridade geralmente leva a um menor crescimento... menor arrecadação
de impostos e mais gastos com seguro-desemprego e rede de segurança básica.
Então piora o déficit.”
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E
conclui que “Não está claro para onde a economia global está indo. Os
resultados do neoliberalismo foram tão ruins que houve um aumento da desigualdade,
as pessoas na base não se saíram bem... Ha uma resposta antidemocrática, uma
resposta fascista em algumas partes do mundo.”
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Esta
é a mesma abordagem na análise do professor Renato Pereira (Folha, caderno Ilustrada
Ilustríssima, 17 de setembro, 2023, p. C12) das promessas do candidato
anarcocapitalista Javier Milei.
O
candidato á frente das pesquisas na Argentina tem um discurso capaz de promover
o mais virulento ataque ao princípio da Justiça Social, além de promessas de
adoção de medidas drásticas de austeridade, o que instiga “.... milhões de eleitores que
vivem sem proteção social em um quadro feroz de instabilidade. A radicalização
política .... é sinal de uma era que combina degradação dos precarizados e
hipertrofia das elites, situação que inflama conflitos abertos pelo poder. “
Vai
além ao apontar tanto semelhanças quanto diferenças entre Trump, Bolsonaro e
Milei, que coincidem no menosprezo à forma como a elite pensante trata seus
eleitores”, caracterizados como uma “Multidão atomizada, tendo de se virar sozinha..sem
proteção, sem carreira, sem garantia”.
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Para
concluir, afirma que “O cancelamento do eleitor ... incorpora um
preconceito.... a rejeição a pessoas que fazem suas escolhas em um quadro de
instabilidade feroz... quando é particularmente difícil acreditarem alguma coisa e manter sua autoestima” e
fazendo coro com o antropólogo Peter Turchin para quem a degradação dos
precarizados e a superprodução de elites são as forças da instabilidade para
finalizar que “ciclos de desigualdade crescente favorecem o surgimento de
elites aspirantes ... processo que multiplica o número de pessoas sem nada a
perder.”