quinta-feira, 28 de setembro de 2023

O Marco Temporal e suas consequências

 


 


Link: https://youtu.be/lD5EKz46bgg


Foi aprovado ontem, por nosso vetusto Senado (vetusto não no sentido de respeitado, mas de deteriorado pelo tempo), o Projeto de Lei nº 2 903, que estabelece, entre outras barbaridades, o marco temporal como referencial para a demarcação de terras indígenas.

Embora a questão do marco temporal seja a mais discutida, o projeto promove outras alterações prejudiciais, de semelhante grau de periculosidade, que podem ser consultadas no site da Agência Pública, apublica (https://apublica.org/2023/08/em-10-pontos-entenda-como-projeto-que-trata-do-marco-temporal-afeta-direitos-indigenas/), destinadas a eliminar a ação de políticas públicas para os povos originais.

***

A lista das alterações contém: i) veda ampliação de terras indígenas, demarcadas antes da definição de critérios claros na Constituição de 88, servindo contra os interesses dos povos originários; ii) permite questionar-se o processo de demarcação em qualquer de suas fases; iii) assegura o uso e gozo, por não indígenas da área, objeto de demarcação até o encerramento do processo; iv) considera de boa fé toda benfeitoria feita, mesmo depois de iniciado o processo de demarcação, assegurando o direito à indenização; v) permite a cooperação e contratação de terceiros não indígenas para exercício de atividades econômicas em terras indígenas, com permissão para o cultivo de transgênicos, atividades de mineração; vi) limita o usufruto integral da terra dos indígenas, subordinando-o ao interesse da política de defesa e soberania nacional, como intervenções militares, expansão da malha viária e exploração de alternativas energéticas estratégicas. vii) finalmente, estabelece que a  implementação será feita independentemente de consulta às comunidades envolvidas ou à Funai e autoriza o poder público a instalar equipamentos e construções necessárias à prestação de serviços públicos.

***

Antes de avançar, convém esclarecer o que se entende por marco temporal. Significa que serão válidos ou “tolerados” apenas os processos de demarcação daquelas terras ocupadas por indígenas, ou que estivessem sendo objeto de litígio,  em 5 de outubro de 1988, data da promulgação  da Constituição Cidadã, de 1988.

A razão para tal defesa é singela:  limitar a demarcação àquelas áreas em que não houve interesse ou não foi possível ao invasor se valer do procedimento adotado ao longo de todo período de nossa colonização, e que se valeu de ataques, agressões e mortes, expulsão ou “convites para que os povos indígenas se retirassem de suas terras.”

***

É também simplória e ignora o fato de as atividades produtivas dos povos originários implicarem o deslocamento por parte do território ocupado, em uma espécie de rodízio.

Ignora as atividades que abrangiam áreas sagradas, destinadas ao culto dos antepassados, de seus espíritos, de seus mortos e da própria Mãe Terra. E áreas de atividades culturais e sociais: jogos, artesanato, etc.

Nunca foi apenas por disputa de terra e propriedades.

***

Mas, a aprovação vexatória desse PL do marco, em momento em que o Supremo Tribunal Federal já proclamara a inconstitucionalidade de tal interpretação não é e não pode ser interpretada como apenas uma reação desrespeitosa ao STF ou uma posição de confronto aberto com o Poder Judiciário.

Tampouco pode ser vista como o interesse do Legislativo de retomar o exercício de suas atribuições institucionais, preenchendo espaços vagos, de forma a impedir que outros poderes venham a usurpar sua função, por absoluta inação. Na verdade, a existência de espaços sem regulação atendem aos interesses daqueles que optam pelo uso da força ou do poder econômico ou político, ou ambos, que detém.

***

O PL faz parte de uma estratégia maior,  muito mais antiga, de supressão pelas elites e classes produtivas dominantes, de eliminação de qualquer vestígio da existência de povos originais, tal qual aconteceu com os povos escravizados – que se tentou embranquecer.

No caso dos indígenas, capaz de se expressar em alto e bom som, por intermédio de um deputado autoritário, mais tarde eleito presidente, cujo ideário ou raciocínio (se existente!) demonstra estreitas afinidades com ideias fascistas, de defesa da eugenia e supremacia branca, e defesa da sociedade de valores do homem branco e hetero.

Desse nazifascista, golpista fracassado e, sobretudo, covarde, é a frase dita em discurso na Câmara do dia 16 de abril de 1988, em que afirmava: “ Até vale uma observação neste momento: realmente a cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país".

***

Em seu respeitado livro Justiça – O que é fazer a coisa certa, o professor de Harvard, Michael J. Sandel (Civilização Brasileira, 2022) dedica todo um capítulo a discutir o tema Desculpas e Indenizações onde trata da questão: ‘Devemos pagar pelos pecados de nossos predecessores?’.

Abordando a questão pelo ângulo do utilitarismo, do individualismo moral e da vontade autônoma de Kant ou de Rawls, ele advoga a existência da condição de solidariedade e de ser membro de um grupo, de pertencimento ou solidariedade, nos permitindo concluir que, se somos parte, somos fiéis e pertencemos a uma sociedade, devemos sim, desculpas por tudo o que fizeram os nossos antepassados, de quem herdamos o espírito e tudo que possuímos como grupo, hoje.

***

Na contramão da ideia de Aldo Rebelo e outros mais pobres de espírito, de que não podemos nos culpar do que nossos antepassados fizeram, de bom ou não.

Mas, no sentido do proprietarismo tão citado por Piketty, que obriga à indenização aos não índios que usurparam – mesmo sem ter a intenção – terras que não lhes pertenciam. Nem com as indenizações aos que de boa fé ocupam tais terras, meras manobras para apor obstáculos às demarcações.

Afinal, como os africanos do Haiti que tiveram de pagar aos colonizadores pela independência e nunca foram pagos pelos sofrimentos sofridos; ou os afro americanos que não receberam nem os 16 hectares e o animal que lhe foi prometido, mesmo combatendo pela formação dos Estados Unidos, também o Brasil apenas indenizou os fazendeiros que perderam sua mão de obra escravizada.

Nunca nem os povos pretos escravizados, nem os povos originários foram indenizados por suas terras e suas vidas invadidas e tratadas como descartáveis.


Um comentário:

Fernando A Moreira disse...

Os "vetustos" só representam os interesses deles e daqueles que os financiam. Esta é a cara da chamada democracia liberal. Como nos foi ensinada a história da colonização? o fascitinha foi punido ao estimular o genocídio? Não!.
Agro é pop, agro é tec... agro é top top...