“Já não se fazem liberais como antigamente, nem antigamente.”
(Paulo Bretas)
O início do período republicano no
Brasil não introduz qualquer alteração relevante na estrutura de nossa economia,
caracterizada como primário exportadora, recém-saída da escravidão.
Era uma economia concentradora de renda
e excludente, baseada na produção e exportação de café, cujas receitas propiciavam os recursos para a importação dos bens de consumo e outros bens, destinados ao atendimento da
demanda da parcela mais privilegiada da população.
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Do ponto de vista
internacional, atravessávamos o período
de hegemonia e expansão dos interesses comerciais e financeiros do imperialismo
inglês (a Pax Britannica), justificada pelas vantagens atribuídas ao livre
cambismo.
Assim, não é de surpreender que a
economia brasileira adotasse um modelo de desenvolvimento voltado para fora,
fundado em uma política tipicamente de
cunho liberal, sob controle das oligarquias agrário-exportadoras.
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Tal constatação fica mais
evidente em razão da fragilidade do governo central na República Velha, sob o
domínio político dos interesses dos Partidos Republicanos estaduais, onde se
reuniam as oligarquias estaduais, compostas pelos grandes fazendeiros (os
coronéis), em detrimento dos anseios das camadas urbanas e da maioria da
população do país.
Como consequências do citado modelo de
desenvolvimento e das políticas a ele atreladas, podem ser mencionados alguns
traços que vão implantar ou apenas reforçar algumas das características que
passam a definir o perfil de nossa sociedade e de suas mazelas, valendo listar:
um padrão extremamente concentrado de propriedade e de renda; a inserção em um
padrão de trocas desiguais, que acarreta uma deterioração cíclica das relações
de intercâmbio, em desfavor de nosso equilíbrio externo; a perpetuação de uma
situação de dependência de financiamentos externos, dentro de uma lógica de
relações desiguais centro-periferia. Em alguns períodos, em especial no
interior do país, vale citar o fenômeno da carestia, expressa pela elevação de preços dos
produtos de consumo básicos.
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Este panorama vai ser alterado a partir da
crise mundial dos anos 30; da eclosão da Segunda Grande Guerra, que contou com o
envolvimento das principais economias industrializadas do mundo; e o surgimento
de uma escola de pensamento econômico na América Latina com uma proposta de
industrialização nos países da periferia com base em forte papel do Estado, segundo
um modelo de nacional-desenvolvimentista.
No entanto, a destruição dos
aparelhos produtivos dos principais países industrializados envolvidos naquele conflito levou a que a economia brasileira reduzisse seu
comércio internacional, embora com as receitas de exportação do café se
retraindo em menor proporção que suas importações, agora
fornecidas por produtores norte-americanos.
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Por esse motivo, ao final da
guerra, enquanto o Brasil apresentava um razoável estoque de reservas
internacionais, enquanto a escassez de produtos de consumo oriundos de exterior dava
suporte a um processo inflacionário.
No Brasil, do ponto de vista
político, os ventos democráticos decorrentes da derrota dos governos
autoritários na Europa provocou um movimento que culminou com a derrocada da
ditadura Vargas e a eleição de um novo governo, do general Dutra, para o
mandato no período de 1946 a 1951.
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Embora o pensamento
estruturalista da Cepal, que pregava a industrialização por substituição de
importações começasse a ser implantado na América Latina,
o governo Dutra opta, ao assumir, por
adotar uma política de cunho liberal, dirigida pelo empresário Gastão Vidigal, que
propunha a liberação de importações como medida para o combate à inflação.
Não durou muito tempo para que se
esgotassem as reservas cambiais do país, gerando uma situação de desequilíbrio
no setor externo e ampliando sua dependência.
Além do desastre provocado em
nossa situação externa pela adoção de políticas liberais, sem que qualquer
mudança estruturante fosse adotada de forma a alterar o perfil de nossa
economia, outros períodos e governos devem ser lembrados pela adoção de
políticas econômicas baseadas na cartilha liberal.
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Assim, em 1964, após o golpe de
implantação da ditadura militar, Roberto Campos no Planejamento e Otávio
Gouveia de Bulhões na Fazenda foram responsáveis, pela adoção de uma política
cuja prioridade era reduzir a inflação, então se aproximando dos 65% anualizados.
Imediatamente os ministros
adotaram um arsenal de medidas propostas pela ortodoxia, como o
afrouxamento da lei de remessa de capitais, visando atrair capitais externos;
uma política de juros elevados que culminou com a quebra de grande parte das
empresas de capital nacional, muito endividadas, num processo ironicamente apelidado
de saneamento econômico; a derrubada da lei da usura, por meio da adoção do
instituto da correção monetária; além de
de duas reformas classificadas como de caráter estruturante, de implementação
possível apenas em tempos de regime autoritário, sem espaço para a discussão
democrática: a financeira e a tributária.
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Por seus efeitos posteriores, destaco
aqui as reforma, por sua capacidade de atuar tanto no esforço se criar
mecanismos de capitalização e financiamento do setor privado de produção, a
Reforma do Sistema Monetário, quanto no saneamento das finanças públicas, a
Reforma Tributária.
A primeira, introduzindo a noção
de um Sistema Financeiro, com a definição de agentes normativos e executivos,
como Conselho Monetário Nacional e Banco Central, e instituições operacionais, como bancos,
financeiras e outros agentes de capital privado.
A segunda, a Reforma Tributária, atua reorganizando
a estrutura de tributação do país, de forma a dotar o Estado de condições de
ampliar sua arrecadação, reduzir seus gastos, diminuir a dívida pública, e poder
criar instrumentos que favorecessem a formação de capital no país.
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Em suas teses de mestrado e
doutorado, Fabrício Augusto de Oliveira destaca a importância da Reforma
Tributária, para o desenvolvimento do capital privado no país.
Outro resultado da politica
liberal foi a quebradeira de empresas, a desnacionalização da economia, a
formação de uma elevada capacidade produtiva ociosa, as altas taxas de
desemprego. Em resumo: ARROCHO.
Arrocho e crise, que geraram
discussões e críticas, embora sempre intramuros, em especial no Exército.
A divergência termina com a
chegada ao poder do segundo governo militar de Costa e Silva, a substituição
dos economistas ortodoxos pelo pragmático Delfim Netto e sua proposta de promover
o crescimento do país.
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Uma terceira experiência
fracassada se deu com o professor Mário Henrique Simonsen, cuja política
ortodoxa levou a críticas pesadas ao governo Geisel, e ao abandono do apoio até
então hipotecado pelos empresários aos governos militares.
Eclipsado por seu companheiro
Reis Velloso, do Planejamento, autor de novo Plano Nacional de
Desenvolvimento, Simonsen se dedicou a
obter fontes de recursos externos para financiar o aprofundamento da
industrialização por substituição de importações, agora nos setores de insumos
básicos e bens de capital.
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Contando com o excedente de liquidez
internacional e financiamentos a taxas de juros flutuantes, em razão da
enxurrada de petrodólares no mercado financeiro internacional privado, Simonsen
adotou a política de endividar o país, muitas vezes apenas para apresentar
saldos capazes de estimularem os credores a nos fornecer mais créditos.
O equivalente a um pai de família
tomar dívidas junto aos bancos para poder ostentar elevados saldos médios.
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A aposta, de altíssimo risco,
poderia até ter funcionado, não ocorresse a a triplicação dos juros nos
mercados de Londres e dos Estados Unidos, com forte impacto sobre o custo de
financiamentos em escala planetária.
Essa aposta de crescimento com endividamento a taxas de juros flutuantes é, em parte, causa da
crise da economia brasileira nos anos 80 e princípio dos anos 90, chamada de
crise da dívida externa.
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Depois de Simonsen, tivemos a
experiência liberal de Collor, e sua re-abertura dos portos do Brasil aos
produtos industrializados internacionais, de melhor qualidade.
Segundo Collor, e com razão, os
automóveis produzidos em nosso país eram autênticas carroças, graças a um
atraso tecnológico que só poderia ser revertido sob o impacto de um choque de
concorrência internacional.
No entanto, sem dar tempo para
que as empresas aqui instaladas pudessem se preparar para a competição, o
resultado dá origem a um processo de desindustrialização, em um país, ainda sob
forte e crescente dependência externa.
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Processo de desindustrialização que tem impulso no governo FHC, que adotou, com algum atraso, todo o programa da cartilha neoliberal determinada pelo FMI, e consubstanciada no chamado Consenso de Washington: privatizações (privatarias), tentativa de redução do papel do Estado a um mínimo, a partir da preocupação com a geração de superavits fiscais - em particular na defesa de interesses de credores internacionais; abertura da economia às importações e aos fluxos de capital, na chamada liberalização financeira;
Vale lembrar a situação da economia brasileira ao final do período FHC, quebrada internacionalmente, necessitando recorrer ao maior financiamento internacional concedido pelo FMI até aquele instante (2002) e submetido a toda sorte de exigências e imposições do Fundo.
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Por fim, os liberais reassumem a
economia no início do segundo mandato de Dilma, evento conhecido como
“estelionato eleitoral” patrocinado pela presidenta reeleita sob a bandeira do
PT.
Desde então, crescimento pífio e juros
elevados, ampliação da desigualdade são as consequências das gestões de Joaquim
Levy; Nelson Barbosa (este menos influenciado pelas ideias liberais); e
Henrique Meirelles, no governo Temer. Por fim, a excrescência de Paulo Guedes,
cuja carreira profissional e experiência, toda construída no mercado
financeiro, nunca pode ser comparada a de qualquer um dos antecessores.
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Preocupações fundamentais com
tripé macroeconômico; ajuste fiscal; manutenção de equilíbrio orçamentário;
busca da zeragem do déficit primário; reforma de previdência e trabalhista,
sempre em prejuízo de trabalhadores e dos setores mais carentes da população;
lei de ouro do investimento; lei do teto de gastos, são o pré-requisitos defendidos pelos liberais para um
processo de crescimento sustentado que sempre se frustra.
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Embora crítico da postura
ortodoxa, não há como não reconhecer que um mínimo de racionalidade na
qualidade dos gastos e em relação às fontes de arrecadação a serem aproveitadas,
não deve ser ignorado, do ponto de vista estritamente técnico.
A questão muda de figura de forma
significativa quando a realização de gastos, mesmo além da arrecadação obtida,
se faz em casos de emergência, como o auxílio pago por ocasião da pandemia da
Covid; ou no caso de se tentar mitigar a miséria de quase metade da população
brasileira, até então, invisível para efeito da elaboração e execução do
orçamento público, dando ao menos uma garantia mínima de alimentação e
sobrevivência.
Nesse caso, o social deve se
sobrepor ao técnico racional, o político ao tecnocrático.
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A pergunta que não quer calar e razão desse pitaco é: se as
políticas liberais sempre que implantadas resultaram em fracasso, qual a razão do
apoio com que conta junto aos meios comunicação, seja nas empresas capitalistas
dos meios de comunicação de massa, seja na mídia tradicional ou nas novas
mídias digitais? Qual a razão do apoio de parte da classe média ou mesmo da
classe menos favorecida e principal prejudicada pelos fracassos?
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Desde logo, devo reconhecer que o
histórico feito aqui é superficial e apressado, não considerando os
condicionantes, os diagnósticos, os planos, as estratégias, os objetivos de
cada política em cada instante.
Importa também deixar claro que,
ao criticar instantes pinçados de nossa realidade econômica, onde houve o
predomínio de ideias de viés liberal, isso não significa não reconhecer erros
havidos nas políticas adotadas por economistas de outras tradições, com
resultados também passíveis de críticas.
Em minha defesa, argumento fajuto
das limitações de tempo e espaço, aliadas ao meu desinteresse confesso em focar,
de maneira crítica, vertentes que contam com minha simpatia.
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É minha opinião que o apoio que
parte da população dedica à visão liberal, especialmente os setores que
integram a chamada classe média, independente do significado que se atribua a
tal conceito, desde que compreendam os profissionais liberais se deve a que as
ideias divulgadas pela corrente de economia liberal estão arraigadas a uma
falsa concepção de individualismo.
Embora admita que essa seja uma explicação
simplória, o individualismo guarda relação com uma pretensa e fantasiosa
igualdade de agentes em disputa no mercado. Que tem como ideia que o mercado se
comporta baseado em uma regra simples, baseada no utilitarismo, segundo a qual todos
anseiam o bem estar e o conforto, pelo qual se dispõem a fazer sacrifícios.
Nesse sentido, quanto maior o sacrifício se dispuserem a fazer, maior o prêmio
final.
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Fossem válidas essas idealizações
do mercado e dos motivos determinantes
do comportamento dos agentes econômicos sempre tidos como racionais, a MERITOCRACIA se imporia como regra de
funcionamento e explicação justa e inquestionável, tanto para os resultados do
sistema econômico quanto da vida social.
A partir da hipótese de que todas
as pessoas alimentam uma gama de ambições em distintos graus, e que acreditam
em suas capacidades e seu potencial, cada sujeito tem a liberdade de ser
e se tornar aquilo que acredita que é. Esta liberdade o convence da supremacia
do mercado livre.
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A frustração de um indivíduo
isolado ao se perceber parte de uma classe social, condicionada por sua forma de
inserção no sistema produtivo e com resultados e ambições que lhe deixam pouca
margem de manobra ou poucos graus de liberdade, é tão impactante que a maior
parte dessas pessoas prefere comprar a imagem onírica que lhes é vendida pela visão
liberal.
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Outra parcela da população - os grandes empresários, os capitalistas em
especial do setor financeiro, os rentistas, ou os grandes proprietários de
terras, etc. dentre os quais nunca é demais explicitar a presença dos donos dos
meios de comunicação e órgãos da imprensa, além de alguns grupos reduzidos de agentes
públicos - sejam os representantes políticos, sejam os ocupantes de funções
consideradas mais nobres, como magistrados -
só se beneficiam da ficção do funcionamento perfeito e equânime desse
‘deus ex-machine’ que é o mercado.
Como se aproveitam e se
beneficiam, não estranha que apoiem e defendam as ideias liberais.
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Quanto à maioria da população, a
ignorância, a falta de tempo para a reflexão das condições de vida que
experimenta, em razão da necessidade de se focarem cada vez mais e exclusivamente,
na batalha diária pela sua sobrevivência, impede de, mesmo sofrendo na pele as
agruras do liberalismo, questionar as fontes de sua opressão e da fetichização
a que, como mercadorias, são reduzidos.