Aprovada em votação de segundo turno pela Câmara dos Deputados na noite da última terça feira, a PEC dos Precatóriorios institui, de forma nada surpreendente, o que poderia ser o estopim capaz de desencadear uma ação de desobediência civil pela sociedade.
Afinal, em apenas uma tacada, a
Câmara desrespeita o princípio do trânsito em julgado; faz pouco caso de
decisões da mais alta instância jurídica do país; admite abertamente a prática
do calote de dívidas; rompe contratos; e ignora o senso comum, que ensina que esgotados
todos os recursos, decisão judicial não se discute, cumpre-se.
Não bastasse isso, indica que regimentos
e regulamentos podem e devem ser alterados de forma a atender a interesses de alguns
grupos, que se acham investidos ou dotados de poder suficiente para passar rasteiras
em quem quer que se lhes oponha, bem à feição de Eduardo Lira ou Arthur Cunha.
Ou Arthuardo Licunha.
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Além disso, a aprovação da PEC é sintomática
de que as leis não devem ser entendidas como normas de controle de
comportamentos e ações de indivíduos ou grupos, destinadas a promover, dentro
dos princípios aceitos pela sociedade e de forma estável, as bases da
convivência social.
Não se caracterizando como regra
estável, as leis podem ser mudadas de acordo com as circunstâncias do momento, pela
vontade e a força de uma maioria momentânea, de ocasião, em flagrante
desrespeito ao direito das minorias.
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Em última análise, ao abrir a oportunidade
para que o governo possa romper o limite legal que criou o teto de gastos, o
comportamento da Câmara joga no lixo também mais essa lei.
Aqui vale uma observação: por
mais que, particularmente, sempre me filiei àqueles grupos críticos à lei e aos
seus efeitos deletérios, não há como não recordar o provérbio: “Dura lex, Sed
lex”.
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O problema maior da votação, e da
sinalização para a tolerância em relação à desobediência civil é que, infelizmente,
sabemos que essa ação é, mais uma vez, uma via de mão única. Ou seja, o governo
e seus cupinchas, ou cúmplices, podem agir ao arrepio da lei, e se tornarem inadimplentes.
O cidadão normal - esse que
trabalha, constrói com seu esforço e suor a riqueza do país, que alguns mal intencionados
vão dilapidar em proveito próprio- esse
cidadão que não se atreva a adotar o mesmo padrão de comportamento de seus
representantes legislativos.
Para o cidadão comum, a punição é
sagrada. E pesada.
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De mais a mais, no momento
político e institucional que o país atravessa, não há motivo algum para se apoiar
um comportamento de desobediência civil que, se adotado por toda a sociedade, ao
contrário de enfraquecer, poderia levar a um recrudescimento das atitudes
autoritárias e de destruição do Estado democrático de direito que o governo não
esconde ser sua intenção.
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Mas, o maior problema da
aprovação da PEC pela Câmara, da forma como ocorreu, é que a conduta da direção da Casa e do
fantoche que a preside, definida e patrocinada pelo executivo federal, reetabelece,
de forma despudorada, a velha e
criticada política da compra de votos.
Todos aqueles que achavam estar
livres do mensalão sob suas várias colorações partidárias, e votaram em quem prometia
o combate à corrupção, assistem atônitos, à instauração do BOLSOLÃO.
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Independente de este resgate das
práticas de corrupção e malversação de recursos públicos estar com dias
contados, em razão da acertada decisão, tomada em boa hora pela maioria do Supremo,
que obriga a transparência da destinação dos recursos de emendas.
Ao menos com dias contados, sob
essa forma pornográfica das Emendas do Relator.
Afinal, mais de 20 bilhões de emendas
do relator foram pagas em 2020, e outro bilhão teve o pagamento autorizado
apenas na véspera da votação do primeiro turno. Apenas na virada do mês de novembro, 3,3 bilhões de reais empenhados, conforme dados divulgados ontem
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O que revela que, ao contrário dos
princípios que devem nortear o processo de criação das normas legais – transparência,
impessoalidade, moralidade, etc. – a lei
(no caso a orçamentária) é tratada, aqui no Brasil, como o instrumento para a
utilização de todo o arsenal de ‘sacanagens’, análogos àqueles que ocorrem no ‘escurinho
do cinema’.
A expressão pode chocar, mas revela
de forma fiel, o modo como alguns maus políticos optam por se relacionar com os
seus eleitores.
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Mas, aberto o cofre, vamos ao que
conta.
Qual a necessidade e motivação real
por trás da PEC?
Segundo o governo, a implantação
de um programa de transferência de renda, chamado Auxílio Brasil, e a necessidade
de se financiar tal programa, cuja necessidade ninguém em sã consciência pode
negar.
Mas, por que a criação desse
Auxílio Brasil causa tanta discussão, se em tese, todos concordam com ele, e
ele é apenas um substituto do programa Bolsa Família, merecedor de tanto
reconhecimento, inclusive internacional?
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Aqui tem início o problema e a
confusão.
O novo Auxílio não substitui e é
muito inferior em sua concepção ao Bolsa Família. Além disso, aproveita muito
pouco a estrutura, a experiência, a forma de gestão já testada do programa anterior.
Daí não ser apenas uma ampliação
dos valores a serem transferidos para as famílias beneficiárias, nem do número
desses potenciais beneficiários.
Na verdade, na visão distorcida e
eleitoreira do presidente, há que se sepultar o Bolsa Família petista. E criar
algo, qualquer coisa, mesmo que parecida, embora sem sustentação.
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Pois a proposta do Auxílio
Brasil, é tão somente eleitoreiro. E tem prazo de validade.
O auxílio e os recursos para seu
financiamento duram até dezembro de 2022.
E depois ... o dilúvio???
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Mas, para bancar o Auxílio, de
onde viriam os recursos?
Parte, do golpe desferido contra o conjunto de cidadãos,
já prejudicados por erros e falhas do governo, sempre muito eficiente em cobrar,
e mau caráter para cumprir suas
obrigações. Dessa inadimplência ou calote dos precatórios, estima-se a obtenção
de R$ 44, 6 bilhões.
Outros 47 bilhões deverão vir da
alteração na forma do cálculo da inflação utilizada para a correção dos valores
de gastos orçados.
A alteração da metodologia, que
corrige os valores não pela inflação acumulada em 12 meses até junho do ano
anterior, mas pela inflação apurada até dezembro, em uma economia vivenciando índices
crescentes de inflação, permite uma maior sobra do limite ao governo.
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Em português claro, trata-se apenas
de um artifício tecnicista para permitir o estouro do teto de gastos, em 2022.
Com consequências futuras, quando se quiser e a necessidade impuser o retorno
da regra fiscal.
A geração de uma brecha fiscal que
libera 91,6 bilhões para o governo bancar os 400 reais pretendidos para cada um
dos 17 milhões de beneficiários ultrapassa em alguns bilhões o gasto total do
programa.
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E o que será feito com os valores
excedentes?
Ao que se sabe, algo em torno de
10 a 12 bilhões irá para financiar as
emendas de relator. Aquelas que serviam, até ontem, para que deputados comprometidos
com a corrupção do governo atual, possam assegurar sua re-eleição. E, assim,
assegurar a tranquilidade ao atual presidente, caso infelizmente reeleito, de
mais 4 anos de destruição da estrutura do Estado, para a implantação de um Estado
de terror e de barbárie.
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Resta apenas pressionar para que a
Câmara Alta (Senado) - ao que parece mais consciente das necessidades sociais e
de suas responsabilidades que os seus colegas de Câmara (baixos) -, não dê ao
governo e aos seus interesse pouco republicanos os votos necessários para a aprovação
da PEC, cujo melhor apelido seria a PEC da vergonha. Ou PEC do Bolsolão.
3 comentários:
Muito didático, como sempre. Fácil de entender de como este DESgoverno pavimenta o caminho da destruição deste país. Quani ao congresso, merece expugos, a começar por liracunha.
Bom, cá estamos...
A corrupção que tinha acabado desde 2016 (contém ironia) agora está sendo retomada?
Ainda é possível defender "o que não tem governo e nunca terá? O que não tem TAMANHO"?
A malandragem nunca fui exclusividade da corja que assumiu desde 2018, mas os requintes cruéis são sua marca registrada. E o povo brasileiro segue... tentando sobreviver, até porque foi se o tempo em que era possível VIVER aqui.
Quanto malabarismo fiscal para garantir um direito constitucional básico. Faz as pedaladas fiscais atribuídas a Dilma parecerem coisa de amador.
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