quarta-feira, 17 de novembro de 2021

Liberalismo e Economia Brasileira: um caso de amor bandido, não correspondido

                                 “Já não se fazem liberais como antigamente, nem antigamente.” (Paulo Bretas)

O início do período republicano no Brasil não introduz qualquer alteração relevante na estrutura de nossa economia, caracterizada como primário exportadora, recém-saída da escravidão.

Era uma economia concentradora de renda e excludente, baseada na produção e exportação de café, cujas receitas propiciavam os recursos para a importação dos bens de consumo e outros bens, destinados ao atendimento da demanda da parcela mais privilegiada da população.

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Do ponto de vista internacional,  atravessávamos o período de hegemonia e expansão dos interesses comerciais e financeiros do imperialismo inglês (a Pax Britannica), justificada pelas vantagens atribuídas ao livre cambismo.

Assim, não é de surpreender que a economia brasileira adotasse um modelo de desenvolvimento voltado para fora, fundado em  uma política tipicamente de cunho liberal, sob controle das oligarquias agrário-exportadoras.

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Tal constatação fica mais evidente em razão da fragilidade do governo central na República Velha, sob o domínio político dos interesses dos Partidos Republicanos estaduais, onde se reuniam as oligarquias estaduais, compostas pelos grandes fazendeiros (os coronéis), em detrimento dos anseios das camadas urbanas e da maioria da população do país.

Como consequências do citado modelo de desenvolvimento e das políticas a ele atreladas, podem ser mencionados alguns traços que vão implantar ou apenas reforçar algumas das características que passam a definir o perfil de nossa sociedade e de suas mazelas, valendo listar: um padrão extremamente concentrado de propriedade e de renda; a inserção em um padrão de trocas desiguais, que acarreta uma deterioração cíclica das relações de intercâmbio, em desfavor de nosso equilíbrio externo; a perpetuação de uma situação de dependência de financiamentos externos, dentro de uma lógica de relações desiguais centro-periferia. Em alguns períodos, em especial no interior do país, vale citar o fenômeno da carestia, expressa pela elevação de preços dos produtos de consumo básicos.

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 Este panorama vai ser alterado a partir da crise mundial dos anos 30; da eclosão da Segunda Grande Guerra, que contou com o envolvimento das principais economias industrializadas do mundo; e o surgimento de uma escola de pensamento econômico na América Latina com uma proposta de industrialização nos países da periferia com base em forte papel do Estado, segundo um modelo de nacional-desenvolvimentista.

No entanto, a destruição dos aparelhos produtivos dos principais países industrializados envolvidos naquele conflito levou a que a economia brasileira reduzisse seu comércio internacional, embora com as receitas de exportação do café se retraindo em menor proporção que suas importações,  agora fornecidas por produtores norte-americanos.

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Por esse motivo, ao final da guerra, enquanto o Brasil apresentava um razoável estoque de reservas internacionais, enquanto a escassez de produtos de consumo oriundos de exterior dava suporte a um processo inflacionário.

No Brasil, do ponto de vista político, os ventos democráticos decorrentes da derrota dos governos autoritários na Europa provocou um movimento que culminou com a derrocada da ditadura Vargas e a eleição de um novo governo, do general Dutra, para o mandato no período de 1946 a 1951.

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Embora o pensamento estruturalista da Cepal, que pregava a industrialização por substituição de importações começasse a ser implantado na América Latina,  o governo Dutra opta, ao assumir, por adotar uma política de cunho liberal, dirigida pelo empresário Gastão Vidigal, que propunha a liberação de importações como medida para o combate à inflação.

Não durou muito tempo para que se esgotassem as reservas cambiais do país, gerando uma situação de desequilíbrio no setor externo e ampliando sua dependência.

Além do desastre provocado em nossa situação externa pela adoção de políticas liberais, sem que qualquer mudança estruturante fosse adotada de forma a alterar o perfil de nossa economia, outros períodos e governos devem ser lembrados pela adoção de políticas econômicas baseadas na cartilha liberal.

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Assim, em 1964, após o golpe de implantação da ditadura militar, Roberto Campos no Planejamento e Otávio Gouveia de Bulhões na Fazenda foram responsáveis, pela adoção de uma política cuja prioridade era reduzir a inflação, então se aproximando dos 65% anualizados.

Imediatamente os ministros adotaram um arsenal de medidas propostas pela ortodoxia, como o afrouxamento da lei de remessa de capitais, visando atrair capitais externos; uma política de juros elevados que culminou com a quebra de grande parte das empresas de capital nacional, muito endividadas, num processo ironicamente apelidado de saneamento econômico; a derrubada da lei da usura, por meio da adoção do instituto da correção monetária;  além de de duas reformas classificadas como de caráter estruturante, de implementação possível apenas em tempos de regime autoritário, sem espaço para a discussão democrática: a financeira e a tributária.

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Por seus efeitos posteriores, destaco aqui as reforma, por sua capacidade de atuar tanto no esforço se criar mecanismos de capitalização e financiamento do setor privado de produção, a Reforma do Sistema Monetário, quanto no saneamento das finanças públicas, a Reforma Tributária.

A primeira, introduzindo a noção de um Sistema Financeiro, com a definição de agentes normativos e executivos, como Conselho Monetário Nacional e Banco Central,  e instituições operacionais, como bancos, financeiras e outros agentes de capital privado.

A segunda, a Reforma Tributária, atua reorganizando a estrutura de tributação do país, de forma a dotar o Estado de condições de ampliar sua arrecadação, reduzir seus gastos, diminuir a dívida pública, e poder criar instrumentos que favorecessem a formação de capital no país.

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Em suas teses de mestrado e doutorado, Fabrício Augusto de Oliveira destaca a importância da Reforma Tributária, para o desenvolvimento do capital privado no país.

Outro resultado da politica liberal foi a quebradeira de empresas, a desnacionalização da economia, a formação de uma elevada capacidade produtiva ociosa, as altas taxas de desemprego. Em resumo: ARROCHO.

Arrocho e crise, que geraram discussões e críticas, embora sempre intramuros, em especial no Exército.

A divergência termina com a chegada ao poder do segundo governo militar de Costa e Silva, a substituição dos economistas ortodoxos pelo pragmático Delfim Netto e sua proposta de promover o crescimento do país.

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Uma terceira experiência fracassada se deu com o professor Mário Henrique Simonsen, cuja política ortodoxa levou a críticas pesadas ao governo Geisel, e ao abandono do apoio até então hipotecado pelos empresários aos governos militares.

Eclipsado por seu companheiro Reis Velloso, do Planejamento, autor de novo Plano Nacional de Desenvolvimento,  Simonsen se dedicou a obter fontes de recursos externos para financiar o aprofundamento da industrialização por substituição de importações, agora nos setores de insumos básicos e bens de capital.

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Contando com o excedente de liquidez internacional e financiamentos a taxas de juros flutuantes, em razão da enxurrada de petrodólares no mercado financeiro internacional privado, Simonsen adotou a política de endividar o país, muitas vezes apenas para apresentar saldos capazes de estimularem os credores a nos fornecer mais créditos.

O equivalente a um pai de família tomar dívidas junto aos bancos para poder ostentar elevados saldos médios.

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A aposta, de altíssimo risco, poderia até ter funcionado, não ocorresse a a triplicação dos juros nos mercados de Londres e dos Estados Unidos, com forte impacto sobre o custo de financiamentos em escala planetária.

Essa aposta de crescimento com endividamento a taxas de juros flutuantes é, em parte, causa da crise da economia brasileira nos anos 80 e princípio dos anos 90, chamada de crise da dívida externa.

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Depois de Simonsen, tivemos a experiência liberal de Collor, e sua re-abertura dos portos do Brasil aos produtos industrializados internacionais, de melhor qualidade.

Segundo Collor, e com razão, os automóveis produzidos em nosso país eram autênticas carroças, graças a um atraso tecnológico que só poderia ser revertido sob o impacto de um choque de concorrência internacional.

No entanto, sem dar tempo para que as empresas aqui instaladas pudessem se preparar para a competição, o resultado dá origem a um processo de desindustrialização, em um país, ainda sob forte e crescente dependência externa.

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Processo de desindustrialização que tem impulso no governo FHC, que adotou, com algum atraso, todo o programa da cartilha neoliberal determinada pelo FMI, e consubstanciada no chamado Consenso de Washington: privatizações (privatarias), tentativa de redução do papel do Estado a um mínimo, a partir da preocupação com a geração de superavits fiscais - em particular na defesa de interesses de credores internacionais;  abertura da economia às importações e aos fluxos de capital, na chamada liberalização financeira; 

Vale lembrar a situação da economia brasileira ao final do período FHC, quebrada internacionalmente, necessitando recorrer ao maior financiamento internacional concedido pelo FMI até aquele instante (2002) e submetido a toda sorte de exigências e imposições do Fundo. 

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Por fim, os liberais reassumem a economia no início do segundo mandato de Dilma, evento conhecido como “estelionato eleitoral” patrocinado pela presidenta reeleita sob a bandeira do PT.

 Desde então, crescimento pífio e juros elevados, ampliação da desigualdade são as consequências das gestões de Joaquim Levy; Nelson Barbosa (este menos influenciado pelas ideias liberais); e Henrique Meirelles, no governo Temer. Por fim, a excrescência de Paulo Guedes, cuja carreira profissional e experiência, toda construída no mercado financeiro, nunca pode ser comparada a de qualquer um dos antecessores.

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Preocupações fundamentais com tripé macroeconômico; ajuste fiscal; manutenção de equilíbrio orçamentário; busca da zeragem do déficit primário; reforma de previdência e trabalhista, sempre em prejuízo de trabalhadores e dos setores mais carentes da população; lei de ouro do investimento; lei do teto de gastos, são o pré-requisitos defendidos pelos liberais para um processo de crescimento sustentado que sempre se frustra.

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Embora crítico da postura ortodoxa, não há como não reconhecer que um mínimo de racionalidade na qualidade dos gastos e em relação às fontes de arrecadação a serem aproveitadas, não deve ser ignorado, do ponto de vista estritamente técnico.

A questão muda de figura de forma significativa quando a realização de gastos, mesmo além da arrecadação obtida, se faz em casos de emergência, como o auxílio pago por ocasião da pandemia da Covid; ou no caso de se tentar mitigar a miséria de quase metade da população brasileira, até então, invisível para efeito da elaboração e execução do orçamento público, dando ao menos uma garantia mínima de alimentação e sobrevivência.

Nesse caso, o social deve se sobrepor ao técnico racional, o político ao tecnocrático.

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A pergunta que não  quer calar e razão desse pitaco é: se as políticas liberais sempre que implantadas resultaram em fracasso, qual a razão do apoio com que conta junto aos meios comunicação, seja nas empresas capitalistas dos meios de comunicação de massa, seja na mídia tradicional ou nas novas mídias digitais? Qual a razão do apoio de parte da classe média ou mesmo da classe menos favorecida e principal prejudicada pelos fracassos?

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Desde logo, devo reconhecer que o histórico feito aqui é superficial e apressado, não considerando os condicionantes, os diagnósticos, os planos, as estratégias, os objetivos de cada política em cada instante.

Importa também deixar claro que, ao criticar instantes pinçados de nossa realidade econômica, onde houve o predomínio de ideias de viés liberal, isso não significa não reconhecer erros havidos nas políticas adotadas por economistas de outras tradições, com resultados também passíveis de críticas.

Em minha defesa, argumento fajuto das limitações de tempo e espaço, aliadas ao meu desinteresse confesso em focar, de maneira crítica, vertentes que contam com minha simpatia.

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É minha opinião que o apoio que parte da população dedica à visão liberal, especialmente os setores que integram a chamada classe média, independente do significado que se atribua a tal conceito, desde que compreendam os profissionais liberais se deve a que as ideias divulgadas pela corrente de economia liberal estão arraigadas a uma falsa concepção de individualismo.

Embora admita que essa seja uma explicação simplória, o individualismo guarda relação com uma pretensa e fantasiosa igualdade de agentes em disputa no mercado. Que tem como ideia que o mercado se comporta baseado em uma regra simples, baseada no utilitarismo, segundo a qual todos anseiam o bem estar e o conforto, pelo qual se dispõem a fazer sacrifícios. Nesse sentido, quanto maior o sacrifício se dispuserem a fazer, maior o prêmio final.

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Fossem válidas essas idealizações do mercado e  dos motivos determinantes do comportamento dos agentes econômicos sempre tidos como racionais, a MERITOCRACIA se imporia como regra de funcionamento e explicação justa e inquestionável, tanto para os resultados do sistema econômico quanto da vida social.

A partir da hipótese de que todas as pessoas alimentam uma gama de ambições em distintos graus, e que acreditam em suas capacidades e seu potencial, cada sujeito tem a liberdade de ser e se tornar aquilo que acredita que é. Esta liberdade o convence da supremacia do mercado livre.

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A frustração de um indivíduo isolado ao se perceber parte de uma classe social, condicionada por sua forma de inserção no sistema produtivo e com resultados e ambições que lhe deixam pouca margem de manobra ou poucos graus de liberdade, é tão impactante que a maior parte dessas pessoas prefere comprar a imagem onírica que lhes é vendida pela visão liberal.

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Outra parcela da população -  os grandes empresários, os capitalistas em especial do setor financeiro, os rentistas, ou os grandes proprietários de terras, etc. dentre os quais nunca é demais explicitar a presença dos donos dos meios de comunicação e órgãos da imprensa, além de alguns grupos reduzidos de agentes públicos - sejam os representantes políticos, sejam os ocupantes de funções consideradas mais nobres, como magistrados -  só se beneficiam da ficção do funcionamento perfeito e equânime desse ‘deus ex-machine’ que é o mercado.

Como se aproveitam e se beneficiam, não estranha que apoiem e defendam as ideias liberais.

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Quanto à maioria da população, a ignorância, a falta de tempo para a reflexão das condições de vida que experimenta, em razão da necessidade de se focarem cada vez mais e exclusivamente, na batalha diária pela sua sobrevivência, impede de, mesmo sofrendo na pele as agruras do liberalismo, questionar as fontes de sua opressão e da fetichização a que, como mercadorias, são reduzidos.

 

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