quinta-feira, 26 de maio de 2022

Moisés, jogador do Fortaleza: a grandeza e significado de um gesto. Pitacos vários para refletir sobre a Lei do Retorno

Confesso que  há muito tempo eu queria ter condições de dar alguns pitacos em outras esferas de nossa realidade, distante das baixarias da besta-fera que ocupa o Planalto.

Acho necessário enfatizar e qualificar a frase acima, “que ocupa”, uma vez que o faz apenas ocasionalmente, já que não é dado a trabalhar,  preferindo a emoção da vida ao ar livre. Ainda que o ambiente em que opte por estar seja sujeito a todo o tipo de poluição, seja a sonora dos roncos de escapamentos de centenas de motos, seja a provocada pela emissão de gases combustíveis expelidos por estas mesmas motos.

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Admito e entendo a preferência do ex-militar por eventos de natureza agressiva ao ambiente, como as motociatas;  os passeios de jet-ski, como Collor;  ou as alegres tardes de passeios de lanchas, acompanhado ou não de outras embarcações deixando rastros de óleo nas águas marinhas, tudo sob a influência de trilha musical repleta de funks e danças desengonçadas.

No fundo, a poluição daí proveniente é preferível àquela causada pelos incêndios que consomem a nossa Floresta Amazônica, que ele finge não ver e não adota medidas para impedir de acontecer. Ao contrário, elogia.

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O problema é, como dizia um seu comparsa em relação ao meio ambiente, a necessidade e urgência de que se aproveitar a porteira aberta para que o cowboy frustrado de nossa Roliude, possa tanger e passar a boiada.

Se o gado opta por ir de moto poluente e barulhenta, pouco importa. A festa é a mesma.

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Mas o pitaco hoje é para tratar de questões mais amenas e registrar feitos mais dignificantes.

Quero tratar aqui, com destaque especial, do gesto do jogador Moisés do Fortaleza, em partida contra o Flu. Gesto que revela a capacidade de  grandeza de que são dotados os seres humanos. E que nos orgulham de sermos desta raça, que não campeia pelos campos e pastagens.

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Desnecessário descrever o lance, mostrado por todas as tevês e programas esportivos do país, desde que, na disputa de uma jogada, com o Fortaleza em situação crítica na competição, o defensor do time adversário sentiu uma fisgada na coxa, parando de correr e, incontinenti, pedindo por substituição.

Ao invés de se aproveitar da situação que lhe favorecia às custas da contusão de um colega de profissão, o jogador optou por paralisar a jogada, deixando de correr em direção a um gol que poderia assegurar a vitória ao seu time.

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A torcida do Fortaleza não deve ter ficado satisfeita, é bem verdade. Ou parte dela. Mas, Moisés, naquele momento, se preocupou mais em ser solidário. Como querendo transmitir a noção de que a vitória tem mais significado quando respeitadas as condições de igualdade na disputa.

Agindo assim, pode não ter ajudado seu time a vencer aquele jogo, mas alcançou vitória muito maior: a da capacidade de empatia, solidariedade, companheirismo da raça humana.

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Muitos falam da existência de uma lei do retorno. No paredão, a bola de tênis volta na hora do treino com a mesma intensidade que o atleta solitário a lançou. Se o lançamento foi muito forte, a violência do retorno pode atingir e até ferir o jogador desatento.

Pois a lei do retorno funcionou ontem: Moisés foi autor de 2 dos 4 gols que classificaram o Fortaleza à fase seguinte, de mata-mata da Libertadores.

Feito  de toda a equipe do Fortaleza que merece destaque, seja por ter sido esta a primeira participação do clube no torneio sulamericano, seja por ter sido protagonista de uma arrancada digna de reconhecimento, em razão da garra rumo à classificação, uma vez que poucos confiavam na capacidade de reação do time, considerado derrotado depois de “jogos de ida” de insucessos.

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Parabéns, Fortaleza.

Parabéns a você Moisés, que reabilita a questão de que o esporte não é, não deve, não pode ser tratado exceto como o que ele é: uma competição para ampliar as relações entre todas as pessoas.

O esporte não é uma guerra. Não pode levar a brigas, confrontos, selvageria e mortes.

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Mais ligado à morte, infelizmente, é a ação da polícia militar despreparada do Rio de Janeiro, que parece estar constantemente em disputa para ver que corporações, que policiais, de que estado, são capazes de bater o recorde de assassinatos e execuções de criminosos das periferias.

No mais recente e triste episódio, mais de 25 mortos... mas todos criminosos. E acentuo a adjetivação dada pelo porta voz da PM às vítimas. Exceto uma mulher, que parece carregar a culpa de estar ali, no local errado e hora errada, como testemunha da selvageria dos policiais.

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De minha parte, permaneço na opinião de que criminosos ou não, de alta ou baixa periculosidade, todos merecem ser tratados como seres dotados de direitos.

Ao argumento de que eles não respeitam direitos de outros, e merecem o que a lei do retorno lhes propicia, contraponho o argumento de que a força do Estado, em nome da sociedade não deve e nem pode ser usada em cumprimento da Lei atribuída a Talião do olho por olho e dente por dente, ausente de nosso sistema de regramento social.

Sob o risco de, ao admitirmos a racionalidade de aplicação da lei espúria, nos transformamos todos, ao final, numa sociedade de assassinos.

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Que o militar expulso das Forças Armadas acusado da prática de atos de terrorismo tenha se manifestado elogiando a ação dos policiais na comunidade de Cruzeiro, morro da Penha, acentua apenas e mais uma vez sua verdadeira índole: a de mensageiro ou porta-voz da Morte.

Do que são testemunhas todos os parentes das mais de 666 mil vítimas de Covid que ele ironizou e acusou de estarem de mimimi.

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Outros eventos poderiam ser abordados nesses pitacos. Infelizmente, a maioria deles sem a mesma inspiração e nobreza do comentário da atitude do jogador Moisés.

Refiro-me ao ataque, mais um, protagonizado por um rapaz desajustado e vítima de bullying por ser gago, Salvador Ramos, no estado do Texas, como relatam ex-colegas.

Até a invasão de uma escola de crianças, na faixa etária de 5 a 10 anos, portando  armas pesadas como dois rifles, de fácil aquisição para promover um massacre que culminou com mais de 21 mortos deve nos servir á reflexão.

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Afinal, mistura-se aqui uma questão de educação e escola, de ensino e respeito às diferenças. De diferenças e agressões verbais sob a forma de críticas ao diferente. De falta de cuidado e atenção aos alunos, mesmo que eles estejam dando sinais evidentes de estarem se sentindo agredidos.

Da falta de um olhar de afeto, talvez por ser a  vítima do bullying, um rapaz estranho, nesse sentido, forasteiro, de fora. E, como tal, não merecedor da atenção dispensada aos que nos são iguais.

Mesmo que seja falsa, é corrente a noção de que as crianças são, sem educação, ensinamentos e limites autênticos tiranos.

Atitude que nelas se explica pelo desconhecimento da diversidade do mundo. E da riqueza acoplada a tal diversidade.

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Nada justifica a barbárie, e o massacre. E menos ainda a morte, em sacrifício por uma sociedade doente, de crianças.

Mas se estes episódios podem ser classificados como exceções, a facilidade de aquisição, de acesso e porte de armamento tem parcela fundamental de contribuição para que o que era eventual cada vez mais vá se incorporando à normalidade – ainda que doentia – de nossa vida em sociedade.

Justo, e importante, registrar sempre, quando o inominável que nos desgoverna faz campanha para o armamento de nossa população.

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E o que justifica a exacerbação de atos discriminatórios nas Câmaras e Assembleias de São Paulo, contra negros, contra mulheres, contra pessoas transfóbicas?

O que justifica tanta agressão no espaço que é de representação da sociedade, exceto a constatação de que a sociedade, ao que parece, está muito bem representada, por um conjunto de bárbaros selecionados e  reunidos em um antro.

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E o que justifica a agressão ampliada às mulheres, vítimas de ataques, agressões e crimes contra a vida, tentados ou consumados.

Até que ponto a doença que grassa em nossa sociedade e que as coloca como vítimas pode ser tratada como provocada ou atribuída,  tal qual na época de condenação da bruxas às fogueiras, às mulheres, seu legítimo direito de conquista da liberdade, de condições de trabalho, renda, respeito, ao direito de não serem preteridas em locais de trabalho, de não serem importunadas em meios de transporte ou vias públicas, culminando até com o direito exclusivo sobre o seu próprio corpo.

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Que razão tem levado tantos homens a se assenhorearem da vida daquelas que alegam ser a inspiração de sua vida, que lhe transmite a falsa sensação de terem o direito de propriedade sobre outras vidas?

A ponto de se julgarem autorizados a matarem como última atitude em defesa desse direito que se julgam detentores?

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Termino com o lema que não pode cair no esquecimento, na luta pela preservação das condições de vida para as gerações futuras de nossa cidade:

Tira o pé da minha Serra.

 

 

Um comentário:

Anônimo disse...

De fato, a cena de Moisés merece aplausos e deveria ser reprisada muitas vezes, a começar pelas escolas, mas também nas empresas, em casa, etc. Afinal representa que há jeito para a humanidade e que vencer tem muitos significados, a vitória deve ser a do respeito ao próximo, antes de mais nada. Respeito... artigo cada vez mais raro por estas paragens, basta assistir o noticiário trágico desta semana, de agressões a mulheres, assédio sexual a crianças, violência cada vez maior daqueles que deveriam zelar pela segurança pública. Mas estamos em um país onde a autoridade maior é também o principal defensor da violência, em todas as suas dimensões e o pior permanece impune... o que inspira muitos monstros que estavam travestidos de gente, escondidos em armários, porões, fardas, jalecos, etc. Me junto ao coro: tira o pé de minha serra.
Fernando Moreira