terça-feira, 26 de novembro de 2024
Pacotes de gastos no Japão versus cortes na carne no Brasil
Link youtube: https://youtu.be/2LKdNizhMss
Por muitos anos convivendo com o fenômeno da deflação, que é o contrário da inflação, em razão de níveis reduzidos de consumo, a economia japonesa foi objeto de vários pacotes econômicos lançados com a intenção de retirá-la da situação de estagnação e estimular um processo de crescimento, e até mesmo, alguma inflação, desde que reduzida e controlada.
Isso porque, ao contrário do que somos levados a acreditar, um ambiente com expectativas empresariais otimistas, com expectativas de maiores vendas e lucros, incentiva a decisão de realizar gastos em investimentos, seja comprando mais máquinas e equipamentos, seja comprando mais estoques. Maiores investimentos levam, em cadeia, a maiores expectativas de vendas de outros setores, com efeito ampliado de criação de mais capacidade produtiva, mais contratação de trabalhadores, mais rendas de salários, mais vendas, mais lucros, em um processo virtuoso de crescimento do PIB do país.
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Já a deflação, ao contrário, leva à expectativa contrária: a queda de preços sinaliza uma estagnação nas compras e menores estímulos a utilizar toda a capacidade instalada, com efeitos claros de estagnação do nível de emprego e dos salários, e à queda de investimentos. Para os trabalhadores mais novos, a frustração é o resultado da chegada ao mercado de trabalho, criando um ambiente propício à ocorrência de crises sociais e aumento da miséria e agravamento dos problemas de segurança.
Somados a essa situação os efeitos de desastres naturais e da pandemia, é possível perceber a razão de edição de vários pacotes de estímulo apresentados pelos governos ano após ano.
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Ainda assim a taxa anual de inflação apresentou valores negativos ou deflação nos anos de 2020 e 2021, alcançando 2,5% em 2022 e acelerando para 3,3% em 2023. E enquanto a inflação para o período de 12 meses encerrado em outubro atingiu a 3,5%, o mês de outubro apresentou taxa de 2,3%, menor que o mês de setembro (2,5%).
A inflação esperada para 2024 é de 3,5% e os grupos com maior peso no Indice de Preços ao Consumidor – IPC, cuja variação revela a medida da inflação, são os grupos de alimentação (26%) e da habitação (21).
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Esta a razão para o anúncio pelo governo, no final da semana passada, do maior pacote de estímulo econômico encaminhado à aprovação do Congresso e destinado a promover a recuperação econômica e uma melhor redistribuição da riqueza entre as famílias e os pequenos negócios, no valor total de 2,7 trilhões de reais.
O pacote inclui a concessão de subsídios às famílias para compensar os custos crescentes da energia e o fornecimento de um apoio monetário de assistência financeira a famílias de baixa renda, semelhante ao nosso Bolsa Família (inclusive com adicional para famílias com crianças), antecipando-se a possível elevação de juros em razão da elevação da inflação. Também procura elevar a renda disponível ao aumentar o limite de renda para isenção do pagamento de Imposto de renda.
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Analistas internacionais criticam possíveis efeitos inflacionários do pacote, classificado como populista em razão do resultado das últimas eleições e por seu objetivo de alivar a pressão sobre o consumidor e promover investimentos em setores selecionados como Inteligência artificial e semicondutores.
Alguns desses analistas citam a preocupação com a frágil saúde fiscal do Japão que apresenta níveis debilmente sustentáveis entre as nações desenvolvidas, passíveis de se agravarem dado o vultoso pacote de gastos, que coloca em risco a sustentabilidade dessa estratégia.
No entanto, quando confrontado com o temor da inflação, o primeiro ministro afirmou que “o mais importante é aumentar os salários para todas as gerações”.
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A título de informação a inflação japonesa tem se mantido na média de 3% ao ano desde os anos 60 (próximo de 1,1% nos últimos 10 anos). O Japão tem a maior dívida pública do mundo, correspondente a 252,6 % do PIB (de 10,8 trilhões de dólares em 2023), financiada pelo Banco Central do país e investidores internos.
No entanto, adota taxas de juros reduzidas que correspondem ao pagamento de uma quantia de 0,12% do PIB, muito menor que a taxa cobrada, como chantagem, pelo capital financeiro, rentista e especulativo que suga até a alma de nossas riquezas. No Brasil, campeão de pagamento de juros da agiotagem oficial, para uma dívida bruta (inclui valores indevidos de operações compromissadas com títulos da dívida) de 84,6% do PIB, o custo de juros anual atinge 5,96%, mais de 800 bilhões de reais neste ano.
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As reações também são diferentes: no mercado japonês, onde o PIB patina e cresceu 0,3% no 3° trimestre, as medias contam com aprovação positiva de 51% das empresas entrevistadas, que planejam aumentar os salários em pelo menos 3% no início do novo ano fiscal em março de 2025.
No Brasil, ao contrário, importa mais a defesa dos privilégios dos mais favorecidos que qualquer argumento destinado a criar uma economia mais justa e com menor desigualdade. Apenas isso pode explicar cobrança histérica dos setores empresariais, à frente o setor financeiro conservador e a imprensa que não se satisfaz em vender espaço publicitário, vendendo também opiniões, por um pacote de corte, na carne, dos gastos.
Isso, sem levar em conta a resiliência demonstrada por nossa economia, e uma taxa de crescimento esperada de algo mais que 3%. Crescimento que se dá não pelo suor e sacrifício da oligarquia financeira, mas por força do trabalho de ampla maioria da população que trabalha sem tréguas e descanso digno (“Somos todos a favor da redução da jornada 6x1”).
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Talvez a postura dos empresários nipônicos, bem distinta da nossa, indique porque o Japão, mesmo em meio a fragilidades, seja a 4ª economia mais rica do mundo. Ou um país com forte indústria tecnológica, ostentando a posição de um dos maiores produtores, e grande exportador, de produtos eletrônicos, automóveis, máquinas.
Vale lembrar que na direção oposta ao Brasil, produtor e exportador de commodities, produtos primários e com baixíssima carga de conteúdo tecnológico.
Em livro publicado há muitos anos, José Eli da Veiga já diagnosticava a razão de nosso atraso como sendo de responsabilidade de nossa elites.
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Aqui, interessa impor ao governo, a todo custo, a definição de um pacote de corte de gastos que retire da população o direito de acesso à saúde de maior qualidade e à educação capaz de formar um ser humano mais qualificado e mais crítico. Cortar benefícios sociais e assistenciais, reduzir salários, desindexar salários e eliminar os ganhos acima da inflação, são medidas bem ao agrado da chantagem dos mercados.
Tudo para assegurar o pagamento dos juros pornográficos e submeter a classe trabalhadora aos desejos da classe empresarial, dentro da lógica da velha luta de classes.
A sugestão é no sentido de que Lula deveria cortar sim, mas no grupo dos empresários e seus incentivos; na farra de privilégios anacrônicos dos militares e sua previdência. Nos altos salários de carreiras jurídicas e de políticos. E, pelo lado da receita, implantar o imposto sobre grandes fortunas e tornar o imposto de renda cada vez mais progressivo.
É isso.
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2 comentários:
Paulo. Seu texto é extremamente esclarecedor e didático. Parabéns!
Há algum tempo o blogueiro argumentou em um debate que uma alternativa para melhor distribuir renda seria ajustar a tabela do IR. O anúncio desta medida, feita ontem pelo Ministro Haddad causou furor no tal mercado... O dólar subiu. A imprensa saiu disparando sobre a "irresponsabilidade" da medida: o aumento do déficit e as prováveis consequências desastrosas a médio prazo... Nenhuma palavra, pelo menos nos telejornais que assisti, sobre as medidas que você comentou em sua análise. Nossas elites ainda respiram saudosamente o ar da senzala.
Fernando Moreira
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