terça-feira, 31 de dezembro de 2019

O longo pitaco que tenta uma retrospectiva de um ano que nem deveria ter começado


Atendendo a um pedido especial, o pitaco de hoje procura servir como uma retrospectiva do ano que, felizmente, se encerra hoje.
Ano marcado pela palavra DIFICULDADES, assim mesmo, no plural, conforme pesquisa popular que o Jornal da Cultura difundiu em sua edição de ontem, seguindo tradição trazida do estrangeiro e que já vai se consolidando em nosso país,  que busca selecionar uma expressão para sintetizar o sentimento popular em relação ao ano que se esgota.
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Ano cujo início mostrou total incapacidade ou desinteresse das forças policiais em investigar e identificar os responsáveis pelo crime político de execução da vereadora Marielle Franco e seu motorista Ânderson.
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Letargia, de certa forma compreensível.
 Afinal, Marielle era a expressão, a representação de tudo que o país, a partir do resultado das eleições de outubro de 2018, escolheu demonizar: mulher; negra; homossexual; vereadora de partido de esquerda; originária e moradora da Comunidade da Maré, no Rio.
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Nesses pitacos, sempre nos referimos à execução, aos seus desdobramentos, e à inércia das investigações como algo deliberado. Vergonhoso. Indigno de uma sociedade que se deseja democrática, livre, civilizada.
Marca da vergonha de uma sociedade invadida pela ação das milícias, em substituição à presença PELO VAZIO, do Estado.
Esse mesmo Estado que, nesse ano de 2019, a sociedade resolveu reduzir a suas dimensões mínimas. Liberando espaço para os avanços do crime organizado. Símbolo, talvez, do empreendedorismo que se deseja implantar, na sanha de se eliminar qualquer formalização do trabalho e do trabalhador.
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Não é demais lembrar que, como um todo, o ano foi marcado por ações, projetos e propostas vindas do Executivo, com a finalidade de usurpar os direitos conquistados em anos de lutas, pela classe trabalhadora.
Tudo isso, no afã de reduzir os custos dos empresários. Reduzir os ditos pesados encargos sociais, a maioria direitos sociais.
Tudo para baratear a folha de pagamentos das empresas e permitir aumento das margens de lucro.
Tudo isso disfarçado pelo discurso oficial da “intenção de estimular o empresário a contratar mais trabalhadores”, medida que já se provou falsa desde que a presidenta Dilma tentou substituir a contribuição previdenciária sobre a folha, por um percentual cobrado sobre o faturamento de empresas de uns poucos setores selecionados e responsáveis pela maior geração de empregos.
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Fazendo apenas um parênteses, a medida do governo Dilma acabou sendo expandida, no Congresso para quase todos os setores da indústria nacional, abrindo uma fenda gigantesca nas contas públicas e contribuindo para levar o o país para a crise das finanças públicas que caracterizou o período que se seguiu.
Claro: tudo sem que nenhuma contrapartida por parte dos empresários beneficiados fosse cobrada. Ou seja, sem obter o resultado que se esperava.
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Mas, o ano de 2019 começou com um desastre sócio-cultural: a posse de Bolsonaro. A elevação da “arminha com as mãos” a símbolo de um novo governo.
E como no caso dos terremotos, onde o principal tremor se faz seguir de outros secundários, de menor intensidade, assistimos a um desfile de banalidades e falta de seriedade na posse dos ministros indicados.
Assim, para a Casa Civil, foi empossado Ônix Lorenzoni, sob suspeita aliás confirmada da prática de Caixa 2. O que Moro, outro comparsa de Ministério, tratou de contemporizar, sob a alegação de que o colega já teria vindo a público reconhecer o erro e se desculpar.
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Para o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a escolha recaiu sobre uma estilista, que chegou já definindo que “menino veste azul, menina veste rosa”. Algo que deve ter deixado a indústria de corantes e têxtil bastante insatisfeita.
Sinal de que ao subir no pau da goiabeira, e enxergar a figura de Cristo a lhe aconselhar, a ministra deve ter perdido o equilíbrio e caído ao solo. Talvez, nunca tenha se recuperado da pancada sofrida na cabeça.
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O mineiro Marcelo Álvaro Antônio, assumiu o Ministério do Turismo, disposto a fazer a plantação de laranjas desbancar o cajueiro como monumento turístico do país.
Como notícias ruins vêm sempre aos borbotões, os nomes indicados, incluindo Moro, o juiz arbitrário e mau intencionado pelo partidarismo com que guiou suas ações nos processos da Lava Jato, formaram todos, uma das piores equipes de ministros de todos os tempos, desde a redemocratização.
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Fenômeno percebido pelo próprio Bolsonaro que já no início de seu mandato se desfez do ministro Gustavo Bebianno, por uma mau contada história que poderia envolver ao próprio presidente, relacionada ao laranjal do PSL do ministro do Turismo.
Apenas um adendo: toda a plantação de laranjas tinha a mulher como a figura a ser explorada, ou sacrificada.
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De ministros da Educação, não é possível falar: tivemos a indicação de dois, e não tivemos nenhum. Tanto que a Educação não fez desenvolver qualquer projeto, salvo aquele que procura cortar verbas das Universidades públicas, estabelecer regras menos democráticas para indicação de reitores, a que procura reduzir o Fies.
Tudo bastante compatível com o ministro ou sinistro liberal desde a época de Pinochet e sua sanguinária ditadura, o posto Ypiranga: Guedes. Ou melhor, no caso, bastante conveniente para sua irmã e o papel por ela exercido junto às entidades de ensino superior privadas.
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Como o ministro das Comunicações efetivo foi Carluxo, o filho, e o das Relações Exteriores, uma composição entre Eduardo, o 03, e o astrólogo Olavo Carvalho, o Brasil, durante o ano beijou o chão pisado por Trump e suas idiossincrasias, para amargar apenas o cheiro e sabor da lama que o americano amassou.
Não fomos recomendados para a OCDE; não melhoramos as relações comerciais com os americanos; estamos sendo constrangidos a não entrar na tecnologia 5G, dominada pela Huawey, chinesa. Para coroar, esse comportamento nos trouxe a ameaça de contratempos com nossos parceiros comerciais árabes e chineses.
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Mas ainda não falamos dos desastres naturais, que tanta dor e sofrimento trouxeram ao país em 2019, como o desastre da barragem da Vale em Brumadinho, em janeiro.
Os desastres do desmatamento que avançava no país, denunciado por órgãos públicos como o INPE e que valeram a crítica de Bolsonaro ao cientista de reconhecimento internacional que presidia o Instituto.
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Acusando o cientista de estar ao lado da esquerda, Bolsonaro o demitiu, como faria com gerente de marketing do Banco do Brasil, por causa de uma propaganda que pregava inclusão social.
Mas o que esperar de quem, como uma das primeiras medidas, cobrou punição para o fiscal do Meio Ambiente que o multou. Alega o presidente que não estava pescando, embora segurasse artefato de pesca. Mas se o presidente não pescava, porque estava com sua embarcação estacionada em lugar que é proibido ao acesso de qualquer tipo de barco?
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Confesso que estou tentando, mas não dá para fazer um texto mais cômico, quando os fatos ao longo do ano vieram se atropelando: fogo na Amazônia, com acusação a Leonardo DiCaprio e desmantelamento da fiscalização das agressões à natureza; avanço da fronteira agrícola junto com a área desmatada na região do Pantanal e da própria Amazônia; avanço de mancha de óleo nas praias do litoral do nordeste.
Tudo isso com a complacência do condenado em São Paulo por crimes ambientais e que não é outro senão o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles.
E some-se a tais lembranças o genocídio de grupos indígenas, incluindo a destruição de sua cultura, seu estilo de vida, suas terras; o genocídio da raça negra, a mortandade de jovens negros, sua demonização, junto com a das religiões de matriz afros.
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Mas não posso negar ter havido fatos engraçados: a fala do presidente em relação à esposa do presidente francês, Emmanuel Macron (acompanhada por comentário tão jocoso quanto deselegante desse exemplo de modernidade e visão cosmopolita, Guedes); a fala em relação à defensora do meio ambiente, a pirralha Greta Thunberg; o “golden shower” do carnaval; o discurso fake a favor do meio ambiente desde Davos, culminando na ONU.
As respostas grosseiras, ríspidas, homofóbicas, misóginas, aos repórteres postados na passagem do Palácio da Alvorada. As piadinhas com o tamanho do órgão sexual dos japoneses.
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Mas preocupa, e não dá para ficar feliz, o retorno da censura, desde a propaganda do BB, até a crítica ao filme Bruna Surfistinha; à ideia de acabar com a TV Escola, com a ANCINE, a suas escolhas sempre destinadas a colocar em alguma instituição justamente a pessoa capaz de provocar sua destruição, como tem sido na área da Cultura, na Fundação Palmares, na Secretaria de Cultura.
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Para concluir, em 2019, ao menos descobrimos que os Beatles eram espiões comunistas da KGB, infiltrados na cena musical inglesa; que o rock é fábrica e inspiração para abortos; que o governo não teve nenhuma acusação da prática de atos de corrupção. Descobrimos, enfim, que o filé mignon, embora caro, deve ser reservado aos filhos; e que a experiência como ilegal na terra do Tio Sam é suficiente para nos representar, na nova dinâmica que se exige de quem precisa apenas ser capacho de Trump e do Tio Sam.
É isso.

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