quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Pitacos filosofais e uma dúvida pertinente: de onde emana o cheiro de golpe militar presente na nossa atmosfera?

Algumas pessoas não nos surpreendem. São o que são.
Há que aceitá-las ou afastá-las.
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Outras há que são vítimas de nós mesmos. Da imagem que fazemos delas e que, invariavelmente se revelam falsas.
Essas pessoas, mesmo inconscientemente, são capazes de nos provocarem decepções profundas.
Mais ainda em uma sociedade que, de repente, desperta o monstro mantido tanto tempo adormecido em suas entranhas.
Monstro que habita as profundezas do que há de mais sórdido, mesquinho, mais tenebroso guardado em nosso interior e que corresponde a nossa porção animalesca, selvagem, ao mesmo tempo que mais natural. O que exige de nós um constante trabalho de domesticação de nossa vontade e de nossos desejos, travestido do que chamamos de educação ou processo de socialização.
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Afinal, se nascemos indivíduos isolados, solitários e livres na acepção mais ampla do significado de liberdade, por outro lado não há como sobrevivermos sem o apoio, a proteção, o cuidado e a atenção de outros indíviduos com que, desde o primeiro sopro de vida, deveremos conviver.
Desnecessário registrar que não somos frutos de geração espontânea, ou “filhos de chocadeira”, o que nos lembra de que até para nascermos dependemos da existência de outra pessoa, aquela que sofre as dores do parto, responsável por nossa alimentação.
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Não é demais reafirmar que o homem é, por natureza, um animal social, como já nos ensinava Aristóteles. Nascemos para viver em sociedade.
Convém também lembrar o significado de sociedade, o grupamento de seres que convivem em estado gregário e em colaboração mútua.
Logo, as manifestações do monstro terrível a que fiz referência antes representam ou a visão canhestra, limitada, de todos aqueles que se julgam capazes de sobreviverem independente da presença do outro, por mais que essa relação seja conflituosa, ou o que é pior, é expressão tão somente do caráter autoritário, daquele que quer impor sua vontade, sua opinião, sua visão de mundo, sua forma de comportamento a todos que ousam divergir de suas ideias arbitrárias.
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Não à toa, nosso país atravessa um período de conflagração aberta, de desrespeito e de intolerância, seja religiosa, seja em termos de orientação sexual, de comportamento social, de posicionamento político, ideológico, etc.  A ponto, de cada vez mais, as rupturas de nosso frágil tecido social estarem dando lugar a um tal esgarçamento que torna-se  difícil imaginar a possibilidade futura de sua recomposição.
A consequência: a falta de respeito à divergência já autoriza e dá vazão a que grupos mais afoitos partam para a agressão pura e simples que nos remete à besta-fera que trazemos conosco.
Pior ainda: tais comportamentos produzem cicatrizes que se estendem à própria alma.
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Insisto no tema: assistimos hoje, a certos grupos que se autodefinem como arautos e defensores da família, da educação, das relações entre familiares, da moral e dos costumes, até da nacionalidade e patriotismo.
Bem entendido: defensores dos valores que eles decidiram, por todos os demais, e sem procuração ou autorização para tanto, que devem ser preservadas, custe o que custar.

Curioso: começamos justo pelo conceito de família, o grupo social cujas relações entre pais e filhos, ou de forma mais ampla, onde todos os laços familiares já se encontram dilacerados desde há muito tempo, a ponto de já terem sido objeto de análises, estudos, publicações que remontam ao século XIX.
Grupos onde seus integrantes cada vez mais representam meras peças de uma engrenagem, instrumentos de acesso a alguma fonte adicional de renda, independente de sua idade, condição de saúde, grau de educação, capacidade mental, o que transforma o sujeito mais e mais em mera mercadoria, insumo, peça, parte ou componente de um processo de produção, de que são alijados como alvos ou consumidores.
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Claro, basicamente estou me referindo às famílias dos assalariados de ontem, transformados hoje em “seres portadores de invisibilidade social”, excluídos socialmente e marginais, em todos os sentidos suportados pela expressão. Seres que vivem de bicos, pendurados nas comunidades periféricas dos núcleos urbanos.
Famílias cuja configuração sofre mutações constantes, em decorrência da sua decomposição, em razão dos custos que sua manutenção implica para quem tem de vender o almoço, cada vez mais, apenas para ter forças para venderem também a janta.
Daí a quantidade de famílias desfeitas, de lares desfeitos, de mulheres heroínas solitárias, cumprindo a tripla tarefa de chefes de família e provedoras, mãe e cuidadoras dos afazeres domésticos, a a jornada de trabalhadora aviltada.
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Famílias com traços diferentes, mas não muito, das relações experimentadas pelas  pelas famílias ditas de classe média, ou das classes mais abastadas, onde a mulher ocupa posição de inferioridade, que lhes cassa desde a potencialidade produtiva, até o direito de se trajar como desejam e se sentem à vontade. Quando o corte não toma a forma de mutilação de desejos, de autonomia de seu corpo, de sua sexualidade.
Ah! Mas isso não conta, e talvez apenas seja mais uma forma de mimimi.
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Afinal, para essa família mais abastada, machista, preconceituosa, já de há muito o esporte predileto dos machos é a caça indiscriminada às filhas de todos os que trabalham para seu conforto. Quando não expandem seu diversão para a arte da sedução mútua de suas próprias mulheres.
Em relação à educação, basta verificarmos a defesa, no nosso ambiente social, de ideias tão retrógradas quanto à teoria criacionista, seja em sua versão mais secular, seja na nova vestimenta do "design criativo". Ou da ideia do terraplanismo, ou dos males das vacinas (tão modernas quanto na época de Oswaldo Cruz!). Ou ainda na visão negacionista em relação às mudanças climáticas. 
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No entanto, sempre há que se dar importância a que o aluno mantenha sua orelha descoberta, para que o conteúdo do aprendizado possa alcançá-lo de forma mais contundente. E que a disciplina e a ordem (unida) possam juntas, formar um homem mais sadio, para cumprir a máxima latina “mens sana in corpore sano”.
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Quanto ao patriotismo, vale sempre lembrar alguns truísmos: primeiro aquele atrelado à frase célebre atribuída a Samuel Johnson, para quem o “que diz que o patriotismo é  o último refúgio do canalha”.
Um segundo truísmo é o que nos informa os livros de economia que nos ensinam que o capital não tem pátria. Especialmente em tempos de globalização e financeirização.
Como se sabe, o capital visa o lucro, segue o lucro, esteja na esfera ou na localidade em que o lucro se manifeste e possa ser realizado, valorizando o valor original.
Além do mais, os limites do mercado, cada vez mais ampliadas, mostram claramente que as concorrências de capitais nacionais são cada vez mais páginas de tratados de história – principalmente econômica, considerados já desatualizados.
Resta então, a difusão do sentimento nacionalista, como forma de, mais uma vez, se impor restrições e limites à possibilidade de sobrevivência dos trabalhadores.
A esses, interessa defender o mercado, cada vez mais exíguo e disruptivo, de mão de obra, frente às ameaças representadas por grupos de refugiados famélicos.
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Ordem? Progresso?
Como diria o Tonto, o amigo do Zorro, para quem, “cara pálida”?
Seria tal dístico positivista (incompleto!) válido para um general como o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, um verdadeiro “gentleman”, característica normalmente atribuída aos rapazes formados na caserna?
Afinal, como ministro de um governo eleito em um regime democrático e militar que jurou cumprir e fazer cumprir a Constituição da República, como deve ser interpretada a frase de que o Congresso (aquele outro Poder do Estado de Direito), chantageia o Executivo? Como entender, à parte a elegância, o uso do hoje tão popular até na literatura “foda-se”, com que ele inadvertidamente pode parecer sugerir que o presidente conclame o povo para ir às ruas, para não ficar acuado!?!!?
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General ministro, que serve a um governo com sérias suspeitas de vinculação às milícias, com a experiência e a responsabilidade do general ministro de nosso GSI, ainda que em tom de desabafo privado, emitir sinais que podem ser interpretados como de aprovação de quaisquer manifestações favoráveis à desordem pública, é sinal de que? Apenas cansaço? Algo mais?  Não pergunto com segundas intenções, e nem precisa explicar. É que eu apenas queria entender, como o macaco Sócrates do Planeta dos Homens de Jô Soares.
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Afinal, sempre pode dar origem a interpretações equivocadas e muitas dúvidas, a quantidade de generais que cerca o presidente mais tosco de nossa vida política, detentor de patente inferior àquela ostentada por seus auxiliares a que lidera.
Especialmente quando as manifestações desses auxiliares, tornando-se públicas, podem alimentar comportamentos que utilizam a desordem como instrumento de pressão.
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Ou tais declarações representam apenas um ato falho do general, desejoso de retomar o projeto militar de poder sempre presente em nossa República, seja como resgate da imagem de triste figura deixada pelo ditadura militar dos anos 60, seja por sua presunção (também questionável) de serem os maiores conhecedores dos problemas nacionais?
A ver. Antes que o movimento ganhe as ruas para outras tantas dezenas de anos de obscuridade e tragédias.


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