quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Liberalismo, vida em sociedade, regulamentações, igualdade de oportunidades: que sociedade é a que desejamos?

José Márcio Camargo, economista e professor da PUC-RJ, em aulas de seu curso de teoria do desenvolvimento econômico afirma, segundo publicado na Folha de domingo último (caderno Poder, página A11) que: "alfabetizar adultos é jogar dinheiro fora". Justifica seu pensamento com argumentos também apresentados na Folha, como são exemplos: "a ausência de desigualdade social é um desastre porque as pessoas são desiguais, pois uns são mais burros que os outros" e "todos os países que tentaram acabar com a desigualdade viraram ditaduras."
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A referência ao professor integra a reportagem 'Alunos universitários pregam liberalismo', onde revela que o grupo Estudantes pela Liberdade, composto por estudantes de vários Estados vem promovendo, há mais de quatro anos, a 'evangelização' do pensamento liberal em universidades e redes sociais, reunindo milhares de correligionários a favor do livre mercado e contra o estatismo.
A matéria informa também que a iniciativa é acompanhada por economistas e professores de universidades, como a PUC-RJ e a FGV-SP.
Vai mais longe e aponta que o grupo considera "que as escolas de segundo grau e universidades públicas estão impregnadas pelo pensamento marxista, baseado na ideias .... de Karl Marx...".
A mim, o detalhe que mais chama a atenção é o fato de o grupo ter como propósito a difusão do pensamento liberal em um país considerado patrimonialista, atrasado e muito dependente do Estado.
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Além do professor José Márcio, cita Bernardo Guimarães, professor da FGV-SP, que ministra cursos para estudantes de segundo grau, apresentando-lhes o pensamento liberal, na tentativa de romper o que chama de orientação marxista dos livros - e professores - de história e geografia, únicos contatos dos estudantes dessa faixa etária terem contato com a economia.
A Folha revela que o professor Bernardo, que inaugurou ontem, terça feira 8 de setembro, um blog tratando da Economia no século XXI, hospedado no portal UOL, do grupo empresarial do jornal, usa como exemplo do dia a dia em suas aulas, para mostrar a ineficiência brasileira, o fato de taxistas de São Paulo poderem levar passageiros a Cumbica, Guarulhos, mas não poderem pegar passageiros no retorno.
Situação que em tese deve encarecer a viagem de ida ao aeroporto, já que tradicionalmente os taxistas têm o direito de cobrar o retorno.
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Cita também Juliano Torres, diretor do grupo que afirma que o liberalismo do grupo é restrito apenas à economia, e que é muitas vezes soterrado por uma visão estatizante, como no primeiro governo Dilma.
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Curiosamente, e antes de tecer qualquer comentário sobre a matéria mencionada acima, na sexta feira dia 4, na mesma Folha, o caderno principal trazia na página A3 um artigo de opinião, traduzido por Clara Allain, de autoria de Mark Weisbrot, para mim, um ilustre desconhecido.
Mas, o autor do texto é codiretor do Centro de Pesquisa Econômica e Política, em Washington, e presidente do Just Foreign Policy, organização norte-americana especializada em política externa.
E, de forma breve, o que diz o texto que fiz questão de ler em sala de aula, e cuja título 'O futuro do Brasil de Levy', tem com chamada de destaque 'A austeridade não está funcionando no Brasil. Essa política não só traz desemprego e pobreza como compromete o futuro do país.'
Pois o autor americano, que acredito não poder ser rotulado de petista de carteirinha, começa afirmando que, ao afirmar que o desemprego vai aumentar e que os brasileiros precisam encarar algumas realidades, o ministro Levy deveria ser o primeiro da lista de demissões.
Para o autor, nenhum país merece um ministro que tenha tal atitude diante de uma das necessidades mais importantes para o povo, o desemprego.
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Em sua análise, o colunista afirma que a maioria dos brasileiros encontra-se em situação muito melhor do que antes de o PT chegar ao poder em 2003, e que dessa data até 2012, a pobreza foi reduzida em 55% e a pobreza extrema em 65%, enquanto os salários reais subiram 35% e o mínimo dobrou.
De 2004 a 2010 a economia cresceu a um ritmo duas vezes maior que o dos 23 anos anteriores, e houve distribuição mais igualitária dos ganhos desse crescimento.
O colunista afirma que esses ganhos estão sendo solapados e que estudo de dois economistas Franklin Serrano e Ricardo Summa mostra que é do governo e de suas políticas de redução da demanda agregada, adotadas desde o final de 2010 a culpa de tal arrocho, no Orçamento, nos investimentos públicos e na paralisação do crescimento.
E vai mais longe ao afirmar: "A  austeridade não está funcionando no Brasil, assim como não funcionou na Europa. Essas políticas não apenas estão criando desemprego e pobreza desnecessários no presente como também sacrifícios para o futuro. O Brasil precisa de investimentos públicos em transporte e outras obras de infraestrutura, mas esses gastos são os primeiros a serem sacrificados."
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Na mesma edição da Folha dessa mesma sexta feira, a professora Laura Carvalho, da USP também trata de criticar os 'ideólogos de Chicago', que estão desdenhando a aula magna de economia que o operário nos deu.
Recomendo a leitura de ambos os artigos a todos que não quiserem se furtar a ampliar os limites do debate que a situação que nosso país atravessa nos proporciona.
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Mas alguns detalhes que me chamaram a atenção merecem ser destacados.
Primeiro, o fato de que instituições de renome como a PUC-RJ e a FGV-SP, e professores de seu corpo docente, serem citados como referência na retomada dos esforços para a - sempre necessária no campo das ideias e da discussão-,,  renascença liberal no nosso país.
Ora, tratam-se ambas, de instituições privadas de ensino, ambas extremamente caras, e no caso da GV de São Paulo, o centro de formação a elite paulistana.
Curso que já teve entre suas fileiras, professores como Suplicy, Bresser Pereira, Chico de Oliveira, Gerald Dinu Reiss, Marcos Cintra Cavalcanti Alburqueque, Roberto Perosa, Maria José Villaça e Paulo Singer, para citar apenas aqueles que foram professores no Mestrado quando tive a oportunidade de, com bolsa do CNPQ, ser aluno daquela Instituição.
Professores que tinham outra visão de país e, quem sabe da própria Ciência Econômica.
Assim, não me causa estranheza que, em sala de aulas com alunos tão privilegiados do ponto de vista do acesso às oportunidades de educação, um professor possa citar com tranquilidade o fato de que a desigualdade social merece continuar, porque uns são mais burros que outros.
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Ora, foi lendo o próprio Marx que pude constatar que não há nenhum desejo de quem quer que seja que o tenha lido com um mínimo de atenção, de eliminar as diferenças que existem e que devem continuar existindo entre os distintos seres que compõem nossa sociedade.
Afinal, um é mais esforçado que outro, mais interessado, mais apto, mais produtivo e, esses, merecem ter acesso a maior benefícios e bens.
O que Marx sempre se insurgiu foi a falta de oportunidades, representada pela apropriação por uma classe social específica do conjunto dos meios de produção.
Não vou ficar aqui recitando lições extraídas de obras clássicas da Economia, mas entre dizer que é um absurdo gastar-se dinheiro com a alfabetização dos adultos, porque burros, e que cada um que se vire sozinho, mesmo que tendo que trabalhar desde a infância, sem condições de irem à aula descansados, sem condições de acesso a materiais escolares, etc. às vezes até mesmo sem condições de terem alimento para fazer com que o ronco da barriga vazia não atrapalhe de ouvir o que a professora esteja falando... sou mais de opinião que temos sim, que fazer tudo para continuar buscando retirar da miséria uma população equivalente à de um país como França ou Espanha.
Mesmo que essa gente toda venha atrapalhar as viagens de cruzeiro de férias ou venham lotar os aeroportos, tirando o conforto dos professores liberais.
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Segundo ponto: há muito tempo, nas faculdades, tenho percebido um movimento contrário ao observado pelos colegas de profissão de São Paulo.
Porque se as escolas privadas continuam ensinando história e geografia por cartilhas marxistas, as faculdades estão cada vez mais cheias de conteúdo relativo aos métodos quantitativos, matemáticas e equações, e modelos, que se adequam de forma bastante satisfatória com o pensamento da corrente de pensamento único, que domina mentes e corações nas academias de todo mundo.
Refiro-me às correntes de pensamento das escolas novo clássica, dos ciclos reais de negócios, dos novos keynesianos, todos parentes, embora divergindo entre seus seguidores.
A ponto de não se ouvir falar em história ou matérias de conteúdo mais voltado para a história e filosofia nas disciplinas do curso. O que fez a própria PUC-RJ perceber a necessidade de elevar o conteúdo dessa área de formação.
Na faculdade em que leciono, praticamente não há referência a Marx, a autores mais críticos como Sraffa, Hall e Hitch, Labini. E aqueles alunos que, por qualquer motivo, tentam levantar discussões sobre questões mais voltadas para o aspecto social, acabam sendo ironizados, deixados de lado, muitas vezes tratados com desdém... os chatos do pedaço.
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Sou favorável à pluralidade nas faculdades e acho importante iniciativas como a do grupo liberal de alunos.
Apenas acho que já está na hora de algum professor, honestamente, transmitir a seus alunos que situações como a de o Estado intervir em todas as coisas, não é nem ideia de Marx, nem de Keynes, embora possa ser confundido com tais pensadores.
É verdade que em sua obra Estado e Revolução, Lênin cita a necessidade de criação da ditadura do proletariado, mas há que se dar a devida dimensão ao que o autor russo queria dizer com tal afirmação, em especial tendo em vista a situação por ele imaginada, de estar em curso uma contra-revolução, à revolução dos trabalhadores.
Mas, daí a culpar o pensamento marxista pela ineficiência provocada pelo sistema de taxis que, regulado pelo Estado é impedido de retornar com passageiros do aeroporto, apenas porque o aeroporto está situado em outro município, com outros taxistas ali registrados, é demais em minha opinião.
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Que o exemplo do taxi ilustra uma situação de intervenção estatal e que expressa perfeitamente bem a ineficiência das regras adotadas pelo poder público, não há como negar.
Mas, a questão é que se os de São Paulo podem pegar passageiros em Guarulhos, a recíproca deve ser verdadeira para os daquele município vizinho, que poderiam trabalhar, com muito menores custos e mais retorno em São Paulo.
A situação lembra a do Uber e de seus motoristas, que muitos usuários defendem como sendo muito melhores em termos de serviços prestados que o taxi convencional. Mas que não está regulado e por isso, escapa à qualquer tipo de regulamentação e controle do poder público, diferente do que acontece com a rede de taxis normais.
Muitos defendem o Uber, por estar a serviço da livre concorrência. É engano. Está a serviço de uma concorrência desigual, predatória e que, sem regulamentação e fiscalização podem se dar ao luxo de funcionar muito bem.
Até que algum acidente venha ocorrer, quando esses mesmos que defendem o serviço como está hoje, irão cobrar as autoridades por estarem deixando de controlar esses serviços.
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Assim somos todos nós. Pensando de forma oportunista sempre em nosso conforto mesmo que às custas de valores maiores, mais amplos, de cunho social.
Mas o tema não é assunto para uma postagem única. E sua discussão deve ter continuidade.

Um comentário:

Anônimo disse...

Parabéns PC, mais uma vez um texto brilhante. Também acho que o que acontence no Brasil de hoje tem o cunho social, o completo desprezo nos mais favorecidos financeiramente em relação aos que tentam ascender socilamente. Considero como discriminação social.

Grande abraço.

Élcio