sexta-feira, 18 de março de 2016

A cordialidade do povo brasileiro e a violência de nossas elites: reflexo do autoritarismo e forma de reforço da exclusão

Entre outras tantas ficções que a propaganda cria e difunde a respeito das características do povo brasileiro, uma das mais propaladas e menos verdadeiras em minha opinião. é aquela que procura cultivar a cordialidade típica do povo brasileiro.
Creio eu que a criação de tal imagem, à qual poderíamos nos referir em sentido amplo como virtual, serve a propósito muito específico, destinado especificamente a domesticar o povão de nosso país. Em outra palavras, o cultivo da imagem do brasileiro pachorrento, bonachão, alegre, descompromissado e, como Irene de Manuel Bandeira, sempre de bom humor, visa passar às classes menos privilegiadas a noção de que qualquer comportamento agressivo, irritadiço, até de cobrança ou manifestação mais exaltada, mesmo que em defesa de seus direitos não fere apenas o padrão típico de "nossa nacionalidade". Vai mais além.
Serve para classificar a pessoa cujo comportamento representa um ponto fora da curva como apartada do meio social em que vive, alienada dos padrões de educação e cultura que são o fundamento do (bom) convívio social.
Em suma: serve como forma de exclusão de todo aquele cujo comportamento se torna mais agitado, mais violento.
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Já se sentindo marginalizado sob todos os ângulos e dimensões da vida social, seja pela condição precária de renda e sobrevivência;  seja pela condição precária de educação e qualificação para o trabalho e, como consequência, pela própria condição precarizada que percebe a respeito de sua ocupação e da atividade que exerce como ofício; seja pela condição precária de moradia, de segurança, de acesso à cultura e aos bens culturais, o povo brasileiro, em sua imensa maioria deseja tudo, menos adotar formas de comportamento que possam ampliar o fosso que sente entre ele e os outros, representados pelos setores mais ricos e educados de nossa sociedade.
Assim, para não correr a pecha de ser considerado como não capacitado a fazer parte da turma de cidadãos do bem, é provável, muito possível mesmo que parte da população a que se convencionou chamar de Zé Povinho opte por adotar uma postura mais dentro dos padrões da conformidade.
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Não sou psicólogo, nem meu conhecimento do comportamento de massas autoriza qualquer pitaco em relação a esse tema. Mas, em toda minha ignorância, o que consigo perceber é que a ideia de brasileiro bonzinho é um importante instrumento de domesticação e disciplinamento da nossa população menos favorecida.
Hipótese que sustento e que, para mim, revela-se nos fatos mais corriqueiros de nosso cotidiano.
Senão vejamos: em qualquer situação pública, se alguém bem nascido, da elite financeira, social ou cultural reivindica seus direitos, pretensos ou não, de forma mais enfática, ou até se tal pessoa chega a adotar um comportamento mais próximo às raias de fato, o comentário que se ouve é sempre o de que fulano ou fulana se estressou. Ou que rodou a baiana. Ou que deu um chilique, desnecessário talvez. Até excessivo. Mas sempre passível de ser compreendido, pela criação de alguma empatia, e até relevado. Ou até perdoado.
Entretanto, se a reação mais exaltada é de um trabalhador, do tipo que tem que acordar as 4 horas da manhã, pegar 2 conduções para atravessar a cidade para chegar ao trabalho e outro tanto para voltar para casa, e que tem a possibilidade de curtir oito horas de prazer carregando pedra ou saco de cimento, amaçando barro, batendo laje, tudo isso sob sol a pino, divertindo-se em sua jornada de trabalho depois de ter negado o vale necessário para comprar o remédio para seu filho adoentado, o comentário é sempre de que nosso exemplo cometeu uma baixaria, ou se mais enfático, até um ato de vandalismo.
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E nossa história é pródiga em exemplos que demonstram que a violência é atributo muito mais vinculado a nossas classes dominantes, as tais elites.
A esse respeito, vide o exemplo, ou nos lembremos dos tratamentos dispensados pelos senhores de engenhos, ou os grandes fazendeiros, a seus trabalhadores. A violência de tal magnitude que permitia não enxergar o trabalhador como um ser humano, tratando-o como animal ou pior até, como escravos. Que em geral eram brindados com a possibilidade de se recostarem no tronco. Ou no pelourinho.
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Mas, as selvagerias não se praticavam apenas contra os trabalhadores escravos. Também eram praticadas contra os agregados, parceiros, meeiros, até mesmo com trabalhadores de níveis mais elevados na escala de funções, como capatazes, jagunços, ambulantes, caixeiros viajantes, etc.
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Isso para não mencionar a violência dentro da própria casa grande, contra as mulheres, principalmente.
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Ora, nossa história está cheia de exemplos e citações da violência protagonizada por patrões contra empregados que ousaram reclamar de qualquer coisa, seja pagamento de salários, seja condições de trabalho.
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Ou seja: a parcela que constitui a elite do nosso povo é de formação e de matriz violenta até a medula, não combinando a realidade que herdamos e que fomos incapazes de combater com a imagem que a publicidade ajudou a erigir.
Comprova tal situação as anedotas de nosso impagável José Simão da Folha, e suas famosas tiradas sobre a cordialidade do brasileiro.
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Apresentada minha tese sobre a violência atávica do nosso povo, posso agora voltar-me para o tema desse pitaco: o temor de que a violência, especialmente nessa sexta feira, dia de manifestação dos simpatizantes do governo Dilma, venha a se fazer presente nas ruas da cidade.
Porque ao contrário de domingo último, dia 13 desse março, em que as pessoas que se reuniram nas praças, ruas e avenidas das principais cidades do país, contrárias ao governo eleito democraticamente, não foram incomodadas pelos que têm opinião antagônica, temo que a manifestação em defesa do governo não irá terminar bem.
Se domingo as manifestações ocorreram em clima saudável de harmonia, quase festivo, como bem fizeram questão de assinalar todos os órgãos de imprensa, elogiando o caráter pacífico e ordeiro do movimento, isso foi resultado do comportamento adotado por todos aqueles favoráveis à manutenção da ordem constituída, que atendendo aos conselhos e solicitações das autoridades responsáveis pela segurança pública, não se atreveram a dar as caras nas manifestações dos grupos adversários.
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Mas, de lá para cá, os fatos mudaram, como o ilustra as aglomerações em frente ao Palácio dos Despachos em Brasília, em que os manifestantes contrários ao governo tentaram forçar a entrada no prédio, invadindo os espelhos d'água que o circundam. Comportamento que redundou em ação repressora da polícia, em defesa do bem público e algumas prisões.
Em São Paulo, as notícias revelam de agressões a um adolescente, apenas por ter tido a "audácia" de dizer aos que o cercaram, que não concordava com a manifestação. Mais uma vez, houve a necessidade de intervenção da polícia, contra a cordialidade dos simpatizantes da derrubada da presidente eleita democraticamente.
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Ações de aglomeração de populares em frente à sede de prédios residenciais ou não,  ligados de qualquer forma ao governo, seus integrantes ou partidários, conclamadas por representantes das elites, sempre do contra, com o intuito de achacar, atemorizar, ameaçar, constranger os governistas, têm sido constantemente relatados.
Pior: relatados por uma imprensa que, de inclinação golpista, nada ou muito pouco apresenta de crítica a tal postura, autoritária, antidemocrática por excelência.
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Ações de violência praticadas pelos participantes dos protestos, que se agigantam. Evoluem em um crescendo, sem peias, sem travas. A ponto de ontem terem, na Paulista, partido para hostilizações e tentativas de agressão ao próprio secretário de Segurança Pública de São Paulo.
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E tudo porque?
Porque esses manifestantes autoritários e pouco afeitos à democracia, reproduzem apenas os velhos padrões de comportamento. E, do alto da arrogância que os caracteriza, mercê da visão de que foram, são e serão sempre os donos do mundo e dos desígnios de nosso país, invadiram a avenida Paulista, ocupando-a e não a liberando para que os grupos pró-governo possam fazer, de forma ordeira, pacífica e cívica, sua manifestação democrática.
O pensamento que os move é o de "nós podemos nos manifestar. Eles, nós não permitiremos".
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Nada anormal. Nada demais.
Exceto pelo fato de que, caso se confirme meu temor, irão para as ruas para realizarem provocações que, dependendo do tipo e alcance irão desencadear reações de mesmo grau de violência.
O que será prato cheio para que a imprensa golpista e sem responsabilidade tenha matéria suficiente para reforçar o caráter "não democrático, violento" e completamente criticável, dos menos favorecidos.
Críticas que apenas retroalimentaram a ideia de exclusão desses menos bem comportados, ou menos educados.

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