segunda-feira, 19 de março de 2018

Considerações sobre a morte e sobre a tentativa de matar os símbolos

A morte da vereadora Marielle, bárbara por si só, pelas circunstâncias e motivação, parece não ter sido o bastante.
Era preciso tentar matar o símbolo em que, mesmo involuntariamente, ela se transforma.
É preciso silenciar sua mensagem e seu exemplo.
Daí porque só o significado da morte - um aviso para todos os que quiserem manter acesa a chama da indignação e a luta contra a discriminação; contra a opressão e o desrespeito; a favor da manutenção dos direitos humanos, tão óbvios - não é suficiente.
Sabe-se, há muito tempo, o poder e o impacto que a criação de um cadáver produz do ponto de vista político.
Várias vezes, o tiro acaba saindo pela culatra e ao invés de alcançar sua finalidade original, as mortes por encomenda fortalecem seu contrário.
Só essa a explicação para a brutal campanha, sempre com o apoio das redes sociais e de seus muito pouco esclarecidos seguidores, visando a desmoralização de Marielle.
Só entendendo o medo provocado pelo surgimento de um fantasma que nem a morte mais pode calar, e a verdadeira face de nosso país, sempre apresentado como cordato e bonachão, mas sempre pronto a disseminar o ódio e a vingança, dá para entender a sordidez capaz de justificar as mensagens de ódio e tentativas de desconstrução da imagem da vereadora carioca.
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Pois agora, no UOL, vem a notícia, mais uma, que dá conta de que nada do que levantaram de falsidade, consegue se fixar na vereadora. Marielle não apenas não teve filha com a idade citada, como não foi casada com marginal, e se teve um tratamento decente com bandidos (também eles seres humanos dignos de tratamento justo), também o teve com outras vítimas da violência de que o Rio é apenas vitrine.
A notícia mais recente é a de que a maior parte da votação da "cria da Maré" veio das áreas mais nobres da cidade, o que desmonta mais uma das acusações torpes levantadas pelos mal intencionados de sempre.
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Ao ver o desenrolar de tal situação, e a sequência de atos abusivos a que ela vem dando margem, volta-me a dúvida, já manifesta nesse blog, das razões de nossa violência tão visceral, embora tão disfarçada.
Já tive a oportunidade de lembrar aqui que, desde a escravidão, nunca fomos o país de gente acolhedora, gentil e solidária que nos tentam impingir. Somos um país de gente solidária apenas quando se trata de problemas que envolvam pessoas que pertençam a uma mesma classe, a que julgamos fazer parte. Ou, especialmente, em relação àqueles que, por estarem em situação mais privilegiada podem fazer com que nossas ações positivas rendam dividendos de espécie variada.
Nesse sentido, envolvidos em um ambiente de miséria, pobreza e indigência mental, na maioria das vezes, ter um gesto de solidariedade, em relação a qualquer outro ser humano já é pretexto para acusações das mais vis.
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Já há muito tempo, por exemplo, a acusação de ser protetor de bandidos, ou passar a mão na cabeça de marginais, tem sido usada contra aqueles que dizem tão somente o óbvio: que se puna o criminoso, mas que se trate com respeito o ser humano ali existente.
O que me faz lembrar da frase que assisti em um documentário sobre o Dr. Sobral Pinto, onde ele afirmava ter adotado o lema do cristianismo: odiar o pecado e amar o pecador.
Para o Dr. Sobral, antes de mais nada, criminoso ou não, todo homem merecia ser tratado como ser humano e ter seus direitos de cidadão respeitados.
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Razão porque ele se prontificou a defender a um cidadão alemão, comunista, cujos pontos de vista eram antagônicos aos que ele acreditava, Harry Berger.
Preso pelas forças do Estado Novo de Getúlio, e torturado barbaramente, o Dr. Sobral Pinto redigiu uma petição ao juiz solicitando que fosse aplicada, em favor de seu cliente, o artigo 14 da lei de Proteção aos Animais, o que representaria um tratamento humanitário ao prisioneiro.
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Pois bem, embora não conhecesse a vereadora assassinada, a verdade é que custo a crer que o fato de uma mulher ter sido mãe solteira, fosse com que idade fosse; ou ainda ter utilizado drogas, em sua juventude; ou ainda ter crescido em um meio onde ser bandido é até sinal de prestígio e status, o que justifica o séquito de meninas correndo atrás de tais marginais; mas custo a crer que isso não seria mais que suficiente para, ao invés de depreciar, apenas mostrar como uma pessoa de boa índole, é capaz de virar o jogo e, mesmo com todas as circunstâncias contra seu crescimento pessoal, se tornar mais que uma cidadã de respeito, um símbolo, uma bandeira na luta por igualdade.
MARIELLE NÃO ERA NADA DISSO, QUE AS FAKENEWS DIVULGARAM.
Mas se tivesse sido, na sua juventude, ainda assim, não haveria motivo para que os mal intencionados de sempre corressem para reproduzir essas histórias, que apenas teriam realçado seu valor.
Afinal, como consta da Bíblia, atire a primeira pedra, quem nunca cometeu um pecado.
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Por falar nessa situação, a Folha ontem, domingo, deu destaque, a meu juízo merecido, a uma ex-viciada, que tendo conseguido abandonar o vício das drogas, presta hoje serviços de assistência e apoio, por conta própria, para outros seres que ainda não tiveram a força de superação que ela teve e que a transforma, também, em símbolo.
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