quinta-feira, 4 de maio de 2017

Pitacos sobre a reforma trabalhista e previdenciária, a perda de direitos e a conquista de competitividade, embora espúria.

Provavelmente fosse o ano de 1999 ou outro qualquer, vizinho da data mágica da virada do ano 2000, com suas ameaças que iam do bug do milênio, ao fim do mundo.
"Bug do milênio" que colocou todo o sistema financeiro em polvorosa e obrigou o Banco Central a criar uma equipe especial para monitorar qualquer problema que pudesse surgir com as contas e valores depositados e que acabou sendo semelhante à volta do planeta Halley à terra em 1986, uma grande frustração.
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Mas nos anos vizinhos à virada do século e do milênio, em alguns semestres, fui indicado para lecionar a cadeira de Economia Internacional, às vezes para o Curso de Ciências Econômicas, às vezes para o Curso de Comércio Exterior, ambos da Una.
E, entre os vários modelos apresentados e discutidos com os alunos, devidamente ancorados nos capítulos do livro texto de Economia Internacional de Krugman e Obstfeld, um tema que despertava grande interesse dos alunos, inclusive motivando a realização de seminários e debates, tratava da análise das questões ligadas ao protecionismo e às suas novas formas.
Lembro-me que, então, época em que o Consenso de Washington do final dos anos 80 e suas ideias e sugestões de política se difundiam especialmente pelos países em estágio de desenvolvimento, e em que o processo denominado de globalização e suas companheiras, as ideias neoliberais, concentravam o debate e conquistavam mentes e corações, uma questão sempre preocupante relacionava-se ao tipo de medidas que deveriam ser adotadas pelo Brasil, de forma a permitir, finalmente, sua inserção no concerto econômico internacional.
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Naquela época, embora já demonstrasse sua verdadeira face vinculada à financeirização das relações internacionais e da liberalização sem limites dos fluxos de capitais, com a queda das regulamentações e controles a esses fluxos, o fenômeno da globalização era tratado quase exclusivamente pela ótica da globalização produtiva.
O destaque ia sempre para as possibilidades de expansão dos fluxos de comércio, provocados pela grande escala e papel das empresas transnacionais e suas instalações em vários pontos distintos do planeta, de forma a permitir a elaboração ou montagem de produtos gerados a partir de peças, partes, componentes produzidos a custos cada vez menores, em países distintos, que apresentassem vantagens comparativas - muitas vezes vinculada à suas dotação de fatores de produção e/ou aos seus recursos naturais.
Era a época em que as manchetes destacavam a produção do carro mundial; época em que a China começava a abrir sua economia para participar da expansão das transações mercantis, admitindo a chegada em seu território de quantidade sem conta de grandes empresas estrangeiras, todas ávidas para aproveitar das vantagens de um país com mão de obra abundante e extremamente barata.
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Lembro-me que uma preocupação constante em todos os locais em que o tema era objeto de debates era, como continua sendo nos dias de hoje, a baixa competitividade de nossa indústria, em grande parte em razão de nossa principal vantagem ser também ligada a uma significativa quantidade de mão de obra, embora com qualificação muito aquém da necessária.
Sem contar com mão de obra com qualificação técnica ou científica, pelo menos não em número suficiente, nossa capacidade de competir com a indústria chinesa naqueles produtos mão de obra intensivos eram muito reduzidas.
Chegávamos à conclusão, então, de que ao país restaria, face a sua situação precária de capacitação e qualificação de mão de obra, dedicar-se cada vez mais aos produtos em que suas vantagens produtivas estavam presas a alguns poucos produtos vinculados à existência de recursos minerais ou à terra. Ou seja, tínhamos tudo para nos concentrar em produtos primários, que iríamos exportar para todo o mundo, adotando um comportamento futuro que consagrava nosso retorno ao passado, e ao atraso do modelo primário exportador.
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Na indústria de tecidos, por exemplo, desde o final da década dos 80s, fomos invadidos por produtos chineses, estando presentes na memória de vários de nós, mais velhos, a lembrança de tecidos chineses e, especialmente, de sapatos chineses, feitos de pano.
Produtos vendidos por camelôs nos centros urbanos, a preço de banana, quase que por quilo, mas que o consumidor sabia que tinha prazo de validade muito curto.
Não havia problemas, o preço muito baixo, permitia que o consumidor usasse um par de sapato por mês, se necessário.
Camisetas e camisas de procedência asiática invadiam nossa vida, embora sempre de qualidade questionável, dado o fato de também a mão de obra chinesa não primar pela capacitação. Sua competitividade vinha, na verdade, do fato de os chineses, oriundos de um sistema econômico que nos era completamente estranho, não serem remunerados da mesma forma que nossos trabalhadores assalariados. Nem terem qualquer direito trabalhista ou previdenciário a eles assegurado.
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Nas aulas, lembro-me de que a discussão sempre resvalava para a hipótese de que a China conquistava mercados para seus produtos (na verdade, de empresas americanas) por praticarem o que muitos denominavam de "dumping social".
Em sala, projetávamos e discutíamos um documentário premiado, que mostrava as condições inumanas a que os trabalhadores chineses eram submetidos e que não se restringiam à baixa remuneração, mas à própria definição da jornada de trabalho, férias e intervalos de descanso, que chegavam mesmo ao tipo de acomodações a que estavam sujeitos.
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Apenas a título de curiosidade, uma observação: com o passar do tempo, e isso foi objeto de destaque nas discussões em sala de aula, empresas como a Nyke, uma das primeiras a se instalarem naquele país milenar, estavam preocupadas em mudar para países asiáticos vizinhos, já que a legislação chinesa passou a exigir um tratamento mais respeitoso ao trabalho infantil.
A Nyke mudou-se, se a memória não me engana, para a Malásia.
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Ficava claro para todos que o que estava acontecendo e que a globalização promoveria em escala cada vez maior era aquilo que o exemplo da Nyke nos mostra com clareza estarrecedora. Para conquistar mercados a partir de preços irrisórios, os trabalhadores teriam que ser penalizados e tratados como no início da industrialização na Europa, com remuneração equivalente tão somente ao nível de sua subsistência. Situação que, mais cedo ou mais tarde iria ter que alcançar outros países que tivessem que competir com a produção intensiva em mão de obra não especializada da China.
Nesse caso, lembro-me de que chegávamos à conclusão de que para que nossa produção pudesse se tornar competitiva, especialmente em condições de competir com os produtos chineses, nossa legislação trabalhista teria que ser toda alterada.
E, curiosamente, para nosso sofrimento, nós que não tínhamos sequer chegado a algo próximo à instalação de  um Estado do bem estar social, como nas nações da Europa Ocidental, teríamos que abdicar, mais cedo ou mais tarde, das conquistas trabalhistas, poucas, que tínhamos nos assegurado.
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Claro, havia exceções, como foi exemplo a Coteminas, firma do ex-vice-presidente da gestão lulista, José Alencar, que aceitou o desafio e, investiu pesado em modernização de suas instalações, conseguindo ganhos de produtividade que, em pouco tempo, permitiam recuperar o mercado nacional de tecidos para o produto nacional.
Ao lado da Wembley, também de sua propriedade, as camisetas chinesas de qualidade inferior foram expulsas do mercado nacional. De quebra, das bancas de camelôs e de nossas ruas.
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Em sala de aula, sempre ao final do debate as discussões estavam centradas em como a classe empresarial iria acabar tornando-se competitiva, a partir da eliminação dos direitos consagrados dos trabalhadores nacionais.
Na época, já se falava em aumento da jornada de trabalho; da elevada e inviável legislação social, com encargos sociais cada vez mais onerosos, que atingiam até a 102% do valor da folha de pagamentos mensal; da eliminação do 13º; da redução do período de férias, etc. etc.
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O que não se admitia é que os encargos sociais não eram encargos relativos a custos apenas, mas verdadeiros direitos dos trabalhadores, conquistados uns, ganhos outros pela benesse de Getúlio, como a luta pela licença maternidade, depois expandida para os pais, e outros direitos que eram alvo da crítica dos empresários e analistas que preferiam adotar a postura de defesa do lado mais forte, do capital e da geração desmesurada de lucros, que do lado mais fraco, do trabalhador.
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De lá para cá, e curiosamente, em um governo que tinha um empresário como vice, o petismo conseguiu refrear, via crescimento e via uma capacidade de surfar no aquecimento da economia mundial e nas commodities a que como produtores fomos reduzidos a negociar, qualquer movimento de redução de direitos.
Mas, a fase de expansão econômica em escala mundial passou. Veio a crise financeira de 2008. A globalização mostrou sua verdadeira face financeira. Os países assistiram à formação da União Europeia, agora se desfazendo.
E porque se desfaz?
Pelo mesmo motivo, no caso da Inglaterra: para o trabalhador inglês se tornar produtivo, competitivo, ele deverá aceitar abrir mão de direitos sociais conquistados, o que ele não admite.
Embora o discurso seja de uma direita populista, retrógrada, o que Le Pen representa na França é, em parte, a mesma reação contrária ao avanço da concorrência internacional sobre empregos e postos de trabalho dos franceses. O que acabará afetando a outras conquistas e direitos assegurados aos trabalhadores daquele país.
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Foi também isso que permitiu eleger Trump, nos Estados Unidos. A globalização e a competitividade que setores da economia americana perderam, já que não querem abrir mão, como é natural, de seus direitos e regalias.
Tornam-se pois, trabalhadores caros, sem qualificação. Cujos direitos passam a ser constantemente foco de críticas e ameaças.
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Nada diferente do que acontece hoje em nosso país, já que é bom destacar sempre: está sendo vítima de um governo ungido por um golpe, sustentado por uma elite capitalista canhestra, de origem financeira, mas não só, que tem o dever apenas de atender e acatar aos interesses daqueles que o sustentam, independente de ser ou não dirigido por uma escória, ou algo próximo a tal definição, tamanha a quantidade de criminosos, suspeitos, investigados, etc. por crimes contra a economia, contra o país, contra o povo.
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Mas é contra o povo que as reformas trabalhistas estão sendo adotadas, afinal de contas.
Para ampliar nossa produtividade, nossa competitividade que nossos empresários não têm capacidade para obter de outra forma, senão contando com o apoio de um governo composto por lacaios, serviçais de seus patrões.
Que não se preocupa com a educação e políticas dedicadas a ampliar nossa qualificação e capacitação, a forma mais benéfica, embora de custo elevado e tempo mais longo, de obtenção de competitividade não espúria.
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Essa é a reforma trabalhista de temer, o anão.
Essa é a sociedade que esse governo usurpador está instalando. Paraíso para os empresários. E um inferno dantesco, para os trabalhadores e para aqueles que, hoje achando-se a salvo das perdas de direitos irão, mais cedo ou mais tarde, perceber que a história, que parece eles desconhecem, trata também deles.
É isso.

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