quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Provocações: a eutanásia e a decisão de vida e morte

Com todo o respeito que me merecem todos os atingidos por eventos que podem apresentar alguma semelhança com os fatos, fictícios, que tratarei nesse post, e respeitando todos os preceitos religiosos, além dos direitos fundamentais e naturais do ser humano, façamos as seguintes considerações.
Suponhamos que existam 10 leitos em um hospital, na ala da UTI ou unidade (também centro) de terapia intensiva e que, em um dado momento, por um infortúnio, apareçam 15 ou 18 casos de pacientes em estado crítico.
Não sou médico, o que me deixa bastante à vontade para poder tratar a situação de um ângulo menos complexo. Tratarei a questão adotando uma abordagem econômica.
Dizem os manuais de economia que quando a demanda (por leitos) supera a oferta, o preço do bem ou serviço deverá subir, até que ao novo preço, alguns dos antigos consumidores desistam de comprar o produto raro e, agora, caro. O racionamento imposto pelo preço de mercado resolveria o problema, reestabelecendo o o equilíbrio de quantidades, a preços mais elevados.
Pergunto, essa solução de mercado, aplicável a produtos ordinários de nosso dia a dia, seria uma solução plausível para um tipo de serviço que envolve a vida humana e sua preservação?
Suponha que houvesse 3 ou 4 pacientes terminais ou críticos, de situação financeira precária. 4 outros, de situação financeira estável. 4 muito ricos e bem de situação financeira e 3 bilionários, desses que frequentam a revista Forbes.
Com o aumento de preço do leito, aqueles com situação financeira precária não poderiam internar-se, nem submeter-se ao tratamento, afastando qualquer possibilidade maior de recuperação, independente do estado em que se encontrassem. Suponha que um desses teria uma chance de recuperar-se de 60%.
Por outro lado, aqueles com situação finaceira estável poderiam ser atendidos e ocupariam o leito por alguns dias. Entretanto, em função da elevação do preço e imaginando que iriam ter que permanecer por um longo período internados, será que teriam condições de manter os pagamentos ao longo de todo o tempo de sua intenação? E se sua disponibilidade financeira se exaurisse a ponto de não poderem continuar honrando os pagamentos? Seriam afastados da unidade, mesmo se em processo de recuperação?
Ou pelas leis do mercado apenas os bilionários mereceriam o acesso e a salvação, podendo pagar por sua estada no tratamento intensivo, independente de suas chances de recuperação serem menores que 5%, ou de sua idade bastante avançada?
Fica claro, ou pelo menos deveria ficar bastante evidente que a saúde mais que um bem é um direito sagrado e inalienável de todo e qualquer cidadão. E que, por esse motivo, nem a saúde nem o acesso a ela deveriam ser,  em circunstância alguma, tratados como mercadoria.
De mais a mais, sendo direito de todos, o acesso à saúde ou o serviço prestado deve ser tratado com um bem público não devendo ser considerado ou tratado como uma mercadoria privada, sujeita às leis de mercado.
Mas, feitas essas ponderações, persiste uma questão inarredável: se os leitos são públicos e de acesso universal ou não, o fato inolvidável é que há maior quantidade de pessoas necessitando da internação que o número de leitos.
Como resolver a questão? Distribuindo senhas, formando filas de tal forma que os primeiros que chegaram se tornem os primeiros a serem atendidos?
Por sorteio aleatório? Por critérios como faixa etária, sendo privilegiados os mais novos, por terem a vida toda pela frente? Por que não os mais velhos, com maior experiência a ser transmitida? Ou as crianças?
Ou deveriam ser privilegiados os que têm filhos? Os casados? Porque os solteiros deveriam ser condenados nesse caso?
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No fundo, estamos diante de uma questão ética e moral de maior importância. Apenas tentamos aqui, deixar de lado possíveis influências de questões como poder econômico, financeiro, ou poder e prestígio social.
A questão é grave e, concordo que não deveríamos deixar que ela fosse sequer imaginada. Todo hospital deveria estar aparelhado e em condições de manter instalações destinadas aos tratamentos mais especializados nesse tipo de urgências. Todo hospital ou casa de saúde deveria ter UTIs e leitos disponíveis, fruto de gastos de investimento e custeio que deveriam ser de responsabilidade do governo.
Mas, ainda que vivêssemos num país paradisíaco, rico, de povo saudável e com políticas de prevenção à saúde efetivas e eficientes, o fato é que nada assegura que, em alguns instantes, poucos, o problema poderia voltar a aflorar.
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E, volta a questão:  a quem deveria ser dado o privilégio de decidir  a respeito de a quem internar ou  a quem praticamente condenar à morte?
À família do doente ou às famílias, fica óbvio que não. Afinal, cada uma iria optar por manter os cuidados com seus enfermos, resolvendo primeiro seu problema e transferindo para os outros a responsabilidade de digladiarem pelos leitos restantes.
Aos médicos? Aos juízes? Aos padres? Ou aos pastores? Ou para seguir a hierarquia de suas crenças, por que não mandar o problema ao bispo?
E, além da discussão de a quem dar o poder de decisão, qual o critério ou critérios que deveriam ser adotados para a solução? Seriam privilegiados os casos de algumas doenças especiais, em detrimento de outras? Ou seriam privilegiados os casos em que as chances de recuperação do paciente fossem maiores?
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Creio eu que os médicos, diretores médicos, coordenadores, tanto ao nível individual quanto em equipe enfrentam e venham enfrentando há muito tempo esse tipo de situações. E vêm tomando decisões, para o bem e para o mal, sobre a vida e morte de todos nós.
Nesse sentido, os médicos agem como deuses. Ou instrumento dos deuses, mesmo sem procuração firmada em cartório para tanto.
Estariam eles errados?
Teriam outra forma de agir?
Ou estariam errados, não por agirem, mas por acabarem perdendo a sensibilidade para com os pacientes, seus problemas e os de suas famílias, tratando suas decisões, sempre questionáveis, como uma mera decisão de alocação de espaço, típica de qualquer almoxarifado?
Dito de outra forma, o problema talvez não estivesse em decidirem a quem dariam o poder - não da vida- mas de persistirem na luta por sua manutenção, em condições mais favoráveis, mas em como manter um mínimo de respeito ao se referir ao paciente não contemplado, que não deveria ser tratado como  um saco de batatas. Manutenção de respeito ao se referir ao paciente, e  também manifestação de respeito aos parentes,  familiares do doente e a suas apreensões, temores, reações.
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A sociedade brasileira finge que o problema não existe ou prefere fingir que não tem ciência de sua existência e consequências. Prefere ignorar que todo dia essa questão se repõe e que deixa problemas graves de várias ordens, moral, religiosa, ética, profissional para médicos sérios, obrigados, muitas vezes contra sua vontade ou sua natureza a tomarem decisões para as quais não se sentem ou não estão preparados.
Mas a sociedade prefere não discutir a questão. O silêncio é mais cômodo, porque não nos torna cúmplices ou participes.
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E aí do médico flagrado tomando decisões dessa espécie, ainda mais se não tiver a mínima sensibilidade para tratar a questão, por formação ou por já se sentir um pouco deus, ou até como fuga ou válvula de escape.
Aí a sociedade toda se volta contra o monstro e o condena, como se tal atitude tirasse dos ombros de todos nós a responsabilidade que deveria ser compartilhada.
Curioso é que grande parte dos que condenam são os mesmos que enchem, sem qualquer pudor o  peito e a boca para bradar pela pena de morte aos crimes hediondos, ou aos criminosos de qualquer espécie.
Triste caso esse do Hospital Evangélico do Paraná. Triste tratamento dedicado à questão pelos meios de comunicação de massa, que desperdiçam a oportunidade de fazerem reportagens e abrirem um debate imprescindível para nossa sociedade.

Trágico o tratamento de espetacularização que o tema da eutanásia merece da mídia, mesmo que sem deter o poder de decidir sobra  vida ou morte de ninguém, até mesmo a não ação, a não discussão signifique já uma decisão de vida e morte para vários seres humanos, grande parte das vezes sem o amparo de qualquer justificativa ao menos mais digna e humanitária.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bacana Paulo. É por aí mesmo. Pena que os esclarecidos sejam poucos. Infelizmente acredito que esse problema ainda vá nos atormentar por muito tempo, ou ao menos enquanto a TV sensacionalista ainda estiver presente na nossa sociedade