quinta-feira, 23 de março de 2017

Terceirização e o que pode advir dessa medida

Atendendo à solicitação do Diego Nunes, aluno e amigo, começo hoje tratando da questão da terceirização, aprovada ontem pela Câmara dos Deputados.
Começo citando o exemplo de uma situação com que convivi.
A Usiminas, empresa siderúrgica, responsável pela produção de aços planos em certa ocasião pelos idos de 1970 tinha em sua estrutura um setor de oficina mecânica, com cargos no plano de cargos e salários da empresa, etc. além de maquinário extremamente sofisticado (até um dinamômetro), cuja função era dar suporte à frota de veículos de propriedade da empresa.
Como isso inchava a folha, e a existência de uma oficina, principalmente com o porte daquela era completamente desnecessário, algum tempo mais tarde foi tomada a decisão de se promover a desativação daquele setor, com a venda de todos os carros da frota da empresa. Em relação ao que aconteceu com os funcionários, nunca soube ao certo se foram mantidos, aproveitados em outros setores da empresa, ou simplesmente dispensados.
A empresa passou a contratar automóveis junto a locadoras da cidade, inclusive com motoristas, quando necessário, o que lhe custou bem menos, já que tal despesa tornou-se eventua, contrariamente à despesa fixa que a situação anterior acarretava.
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Anos mais tarde, tomei conhecimento de um projeto que a Fiat Automóveis estava implementando, de reestruturação, bem nos moldes das, à época, modernas técnicas de gestão japonesas, conhecido como projeto J.
Eram os idos de 1993, e a empresa resolveu fechar vários dos setores ou departamentos que existiam anteriormente, dispensando os funcionários. Contudo, antes de demiti-los, proporcionou-lhes treinamento e os financiou para que pudessem abrir empresas próprias, que iriam trabalhar, fazendo exatamente o mesmo que já faziam antes, no interior da montadora.
A diferença é que o funcionário, agora empresário, iria ter assegurado, ao menos no primeiro momento, um contrato para prestar o fornecimento daquele produto para a Fiat.
Não me lembro do prazo de duração de tais contratos, mas lembro que a Fiat dava toda a orientação técnica e gerencial para que a empresa do seu ex-funcionário continuasse produzindo, e atingindo padrões de qualidade exigidos.
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A decisão de fazer essa reestruturação devia promover grande redução de custos, se pensarmos que a empresa ainda tinha gastos com a consultoria que assegurava para seus ex-funcionários. E a Fiat só adotaria tal comportamento se isso fosse lucrativo, como bem sabemos.
A Fiat ainda se gabava de que, capacitando seus fornecedores, eles poderiam passar a atender até mesmo outras empresas, ganhando gradativa independência da própria Fiat.
Um dos beneficiados pelo plano, em entrevista concedida para vídeo institucional que apresentava o projeto J, manifestou-se muito grato à empresa, principalmente por ela estar mostrando preocupação em estar ensinando a todos a como virar empresários. Lembro-me que chegou a falar que até a questão de que preço fixar para seu produto, que ele antes não tinha ideia de como calcular, a Fiat calculava para ele e fixava para ele.
Grande ajuda!, pensei eu. A Fiat elimina todo o custo de encargos sociais e deixa toda essa responsabilidade nos ombros do ex-funcionário, agora empresário. Não bastasse isso, ainda o mantém empregado sem o vínculo trabalhista, apenas por meio de um contrato de fornecimento e o "ensina" a estabelecer o preço que vai ser aquele que ela irá pagar comprando o produto.
Claro que para o empresário sem conhecimento da questão de custos de produção e sua administração isso seria muito benéfico. Mas ele não percebia que a Fiat não estava apenas ajudando a ele. Estava também determinando sua própria margem de lucros.
O que deveria estar fazendo em algo acima do valor de seu salário anterior, para compensar a ele a perda do emprego, mas bem abaixo do salário acrescido de encargos e direitos trabalhistas. E, caso o trabalhador agora ganhando pro-labore fosse pagar todas as contribuições previdenciárias e ainda por na ponta do lápis o custo de seus direitos, como férias, 13º etc. veria estar recendo um valor líquido menor que o de quando recebia salário.
A diferença é que agora ele era patrão e empresário.
Algo que Lênin chamou certa feita de um empregado de luxo do mesmo patrão.
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Confesso que não sei se a consultoria e ajuda se manteve, ou se se manteria em uma crise, quando a Fiat resolvesse paralisar a produção, por exemplo. Como também não sei se as empresas puderam vender para outras empresas, como era a promessa, nem se essas outras empresas eram concorrentes da Fiat.
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Ou seja, não vejo mal algum em que as empresas adotem a terceirização para atividades completamente desconexas em relação a sua atividade principal, ou hard core, como faxina, vigilância, etc. que é fato, permitem que novas empresas sejam criadas e se desenvolvam no mercado.
Mas lembro-me do Banco Central com problemas sérios quando as empresas contratadas para tais serviços de apoio não cumpriam suas obrigações legais com os seus funcionários. O que ocorria com maior frequência do que era de se esperar.
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Apenas por uma questão de justiça, cito também o fato de que, em Carlos Barbosa, tomei conhecimento de que a Tramontina desativou seu serviço próprio de transporte, vendendo toda a frota de carros, e dispensando os antigos motoristas da empresa.
No plano da empresa, os carros financiados foram vendidos para os trabalhadores dispensados que continuariam dirigindo para a empresa, por força de contratos estabelecidos.
Um desses funcionários demitidos, que prestava serviços sob contrato para a Tramontina manifestou-se bastante satisfeito de poder trabalhar sem chefe. Embora ele devia tanta obrigação ao responsável pelas chamadas para realização de corridas em benefício da empresa como antes.
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Quanto a dizer que a terceirização aumenta o emprego, acho que isso não é exatamente verdadeiro, já que apenas substitui o empregado da empresa que está terceirizando por aquele agora terceirizado.
Não vejo como isso aumenta o número de pessoas que passaram a ter oportunidade de trabalho, exceto se antes o número de funcionários alocados para as tarefas não fosse o suficiente para que elas fossem executadas.
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Entendo, então, que a terceirização não é algo que tem certa racionalidade, a partir do momento que, especialmente em relação às atividades meio, não dispersa recursos das empresas produtoras, e permite que ela foque sua atividade principal. Mas, olhando pelo lado do trabalhador, há de se reconhecer que ele terá, pelo ônus que passará a ter com pagamento de encargos sociais e dos direitos assegurados na CLT, uma redução real de seu salário líquido.
Situação que pode, e na maioria das vezes acarreta a dificuldade de ele honrar esses pagamentos e esses custos, o que faz com que, para manter a renda de antes, pare de recolher essas obrigações.
O que irá acarretar problemas sérios mais tarde, principalmente por força de não ter adotado um comportamento previdente.
Ou no caso de não ter sucesso como empresário, no caso de tentar se manter como autônomo.
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Outro caso é a terceirização da atividade principal da empresa, que passa a ser, levado ao extremo um projeto de terceirização amplo, mera gestora ou coordenadora de atividades mantidas  por outras empresas ou fornecedores contratados. Apenas que passam a ganhar uma margem de lucro que não pode mais ser explicado por qualquer menção a risco de empregar seu capital, já que o capital em risco agora não é mais de sua propriedade.
De fato, ele vai cobrar apenas por uma maior capacidade de coordenação de atividades, por maior capacidade de adotar práticas de marketing, ou por sua criatividade mais desenvolvida.
No fundo, isso representa uma completa inversão de todo o processo de surgimento das empresas e fábricas, desde a época do "putting out system" de produção, caracterizado pela produção doméstica de partes do produto.
Como já mostrado por Marglin, no texto What Do the Bosses Do?, o empresário, nos primórdios, eram aqueles que detinham capital em dinheiro, o que lhes permitia comprar matérias primas necessárias ao processo de produção que ele não dominava ou não conhecia. Assim, de posse da matéria prima, por exemplo, o algodão, ele contratava os serviços domésticos de vários fiandeiros, que eram remunerados para fazerem tecidos que, depois eram levados a outros trabalhadores que se incumbiriam do tingimento. Para em seguida serem levados aos que fariam os moldes, aos costureiros, e com a peça de roupa pronta, seriam vendidas pelo empresário.
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Nesse sistema, quem dominava a técnica de produção eram os trabalhadores domésticos, embora não tivessem conhecimento do processo de que seu trabalho fazia parte.
Mas, havia sempre o problema de controle das quantidades, de desperdícios ou mesmo apropriações ilícitas, de material em cada etapa da produção. O que levou à ideia de concentrar todos os trabalhadores em um mesmo local, para permitir ao dono do capital que os contratava, poder vigiá-los melhor.
Daí à departamentalização e à padronização do fordismo, que alienava o trabalhador do produto tanto quanto do processo de sua geração, foi um pulo.
O que permitia ao empresário justificar seu lucro, pelos riscos de aplicação de seu  capital, e por ser quem no final era detentor do conhecimento do que estava sendo feito e como.
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Agora, nem tanto capital assim será mais necessário para o empresário, já que sua capacidade e inteligência e espírito inovador e criatividade passam a ser o fator mais importante de sua atividade. Quem terá que arcar com maiores somas de capital, por ter que aportar mais recursos antecipados para suportar a contratação de fatores e insumos, que compõem parte dos custos de produção além dos encargos, será a empresa ou o próprio trabalhador avulso, terceirizado.
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Do ponto de vista da empresa, como lembra Coase, poderá haver perda de eficiência e aumento de custo, já que a contratação de trabalho (e seu agente), por tarefa pode estar sujeita às vicissitudes e flutuações de preços correlatas dadas as condições sempre mutáveis e dinâmicas do mercado.
Razão para que esse autor sugerisse que a contratação de assalariados pelas empresas poderia gerar economias de transações.
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A única forma de que essa economia que não será mais gerada seja positiva para a empresa é caso haja alguma redução significativa do custo do trabalhador para a empresa, independente do que esteja acontecendo com a flutuação de preços do tipo de serviço contratado no mercado.
Isso só se daria pela completa submissão desses mercados de serviços para contratação, o que lhes rebaixaria o preço, e implicaria na existência de um processo de precarizalção do tipo de trabalho passível de contratação.
Em síntese, precarização do trabalho. Perda de direitos legitimamente conquistados, e regulamentados em lei. E, dada a existência de milhares de trabalhadores nessas condições, a concorrência predatória entre os profissionais, no sentido de serem eles os contratados, para não ficarem ociosos ou inativos. Isso os levaria a oferecerem sempre preços cada vez mais reduzidos, o que permitiria, tudo o mais constante um aumento expressivo dos lucros do capital.
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Em síntese, para não alongar demais essa já longa digressão, o que podemos esperar é empresas dispensando seus funcionários, mesmo os mais capacitados, incentivando-os a se transformarem em pessoas jurídicas, incentivando-os a estabelecerem suas empresas, ou apenas pela criação de microempresas individuais, para serem contratados para fazer o mesmo serviço de quando eram assalariados.
Mas, na competição aguda de milhares vendendo os mesmos serviços, e na incerteza de que obteriam êxito nessa tentativa de serem os fornecedores contratados, os trabalhadores se submeteriam, exceto em casos muito excepcionais de trabalhadores de extrema qualificação ou dedicados a trabalhos muito específicos, a ofertar valores menores que os que mereceriam obter.
Desse valor bruto, ainda teriam que pagar os encargos trabalhistas de que as empresas maiores se livraram, o que reduziria ainda mais o que eles teriam de rendimento.
Para não serem prejudicados em relação ao padrão de vida que mantinham antes, alguns não irão realizar os pagamentos desses encargos, ou não terão condições para tanto.
Ou seja: a precarização do trabalho, poderá levar a uma redução da formalização no mercado de "trabalho", visando não ter que honrar com os custos desses encargos.
Com isso, a previdência pública entrará em colapso, arrecadando menor volume de contribuições que os gastos já contratados com o pagamento de benefícios.
Isso ajudará aos mercados financeiros e a expansão de seus planos de previdência privados, além das empresas cuja margem de lucro poderá expandir, no mínimo, pela redução de custos com encargos.
O trabalhador não. Esse perde, salvo repito, em condições muito especiais.
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A previdência pública se reduzirá a um mínimo. E a justiça do trabalho também não terá muito em que atuar, sendo substituída por juizados para arbitrar decisões à luz da interpretação de contratos comerciais firmados.
Contratos que, para serem assinados e não deixarem a parte responsável pela prestação do trabalho sem atividade, aproveitarão da força que o contratante mais independente, mais autônomo, de maior poder e maior capital detém, para impor cláusulas sempre favoráveis a seus interesses.
Ou seja: as empresas como partes mais poderosas poderão impor suas condições, o que submeterá os trabalhadores contratados, sob pena de não encontrarem traballho e não terem renda.
E dúvidas em relação à interpretação de tais cláusulas serão feitas de forma mais rápida, e com resultados que podem ser antevistos como sempre tendenciosos e favoráveis à parte mais forte.
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Ganham com isso os contadores que irão aumentar sua clientela, já que como empresas constituídas haverá uma série de documentos e notas fiscais, e livros e registros que deverão ser feitos por trabalhadores sem conhecimento para lidar com tais aspectos burocráticos.
O que representará mais um custo para o profissional terceirizado.
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Para concluir: ganham as empresas, ganha o capital, em especial, o grande capital. Perde o trabalho, perdem os profisisonais de todo tipo, perde a sociedade.
Sinal de que os nossos deputados vão cumprindo à risca o que lhes foi determinado por seus patrões/financiadores, os magnatas do capital.
Quanto ao país, corremos o risco de voltarmos à época da escravidão, agora com pagamentos contratados livremente, e sem os castidos físicos que marcavam os escravos. Agora os castigos são de outra natureza. São castigos da alma. Da frustração de pessoas acreditarem estarem evoluindo na vida, mudando de classe ou de posição, por estarem se transformando em empresários, quando de fato suas condições de sobrevivência apenas deterioram.
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Um comentário:

Vinícius disse...

Outro fator importantíssimo que o ilustre Professor Paulo esqueceu de mencionar: a tendência é de que haja uma perda do poder do compra daqueles trabalhadores que serão afetados pela medida, ou seja, a maior parte da população. O que os apoiadores da medida não estão percebendo é que, no longo prazo, isso irá representar um "tiro no pé" para eles; pois estas mesmas empresas terão uma redução brusca de suas receitas dada a menor demanda pelos produtos que haverá com a redução da renda.