terça-feira, 1 de abril de 2014

Minhas memórias esparsas do golpe de 64

Primeiro de Abril. Não fosse o dia da mentira, eu deveria estar hoje comemorando a data verdadeira de aniversário do golpe que, nos idos de 64, foi responsável pela instalação da ditadura, o início da prática da tortura, vinte e um anos de terrorismo de Estado e concentração de renda, arrocho salarial e hiperinflação somada à dívida externa impagável.
Convenhamos, não é pouco.
E ainda há quem seja capaz de encaminhar emails que apenas têm a finalidade de emporcalhar MAIS a nossa caixa postal, reivindicando a volta dos militares, aqueles que, a seu tempo, governaram de forma a permitir que o país tivesse Ordem e Progresso.
Pessoas até, que mais que revelarem seu desejo de voltar ao período de obscurantismo e autoritarismo, foram capazes de pretenderem reeditar a Marcha da Família com Deus que, se há 50 anos lotou as ruas das principais capitais do país, não conseguiram angariar, agora, mais que meia dúzia ou dúzia e meia de saudosistas dos quartéis.
Pois bem, confesso que até me esforço para tentar entender as razões que levam algumas dessas pessoas a se posicionarem abertamente a favor de uma época que deveria ser atirada definitivamente na lata de lixo de nossa história, não fosse o fato de que nunca, mas NUNCA mesmo, devemos sepultar o passado, por pior que ele tenha sido, de forma a evitar que venhamos a repetir, no futuro, os erros do passado.
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Em alguns casos, consigo até ver justificativas para uma certa simpatia com o movimento militar golpista, ao menos em seus primeiros movimentos.
Afinal, como Rui Castro afirmava ontem em sua coluna na Folha, pessoas de expressão e grande relevância em nosso país, ou que vieram a assumir um papel importante no desenrolar dos fatos, nos 21 anos que se seguiram àquele golpe, também adotaram postura de apoio, logo em seu nascedouro.
Casos de D. Paulo Evaristo Arns que mostrou-se solidário com a realização da Marcha, ou de Ulisses Guimarães, que não se opôs à ruptura democrática.
Mesmo em minha família, em minha casa, havia um sentimento de apoio aos golpistas muito grande. Lembro-me de que era época de Semana Santa, quando a semana começava ainda na segunda feira, com a celebração do terço e da Via Crucis e se estendia até a celebração da Eucarístia na quinta feira Santa.
Mas, diferente de outros anos, aquele ano as paredes da igreja de São José serviam para refletir filmes sobre a vida, paíxão e morte de Jesus, juntando no adro da Igreja milhares de pessoas. Havia pregações, cujo conteúdo não me lembro, mas o que me impressionava era o fato de eu não me lembrar de ter visto tanta gente junta, antes. E houve também uma celebração que ia contar com um religioso famoso, vindo especialmente para o evento, que iria se realizar na Praça Raul Soares e que juntou milhares de pessoas. Como se de repente toda a cidade fosse tomada por uma comoção religiosa extraordinária.
Nesse meio tempo, lembro-me de que o Estado de Minas anunciava a vinda de Leonel Brizola para realizar um comício no auditório da Secretaria de Saúde, hoje Minascentro, e que o jornal repercutia que aquele comunista não poderia ter espaço para fazer discursos aqui em Minas.
Pois bem, nesse comício que, ao que parece acabou não se realizando, alguém jogou um ácido em alguém na plateia, e o ácido atingiu uma parente, neta, se não me engano de um tio meu.
Ah! curiosamente, a menina era também parente pelo outro lado da família de alguns generais da família Morais de Barros.
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Claro que não precisava muito para toda a família ficar indignada e a favor do golpe dos militares, antes que Jango implantasse o comunismo no Brasil.
Na escola, nos comentários com os colegas, todos aproximando-se dos 10 anos, o que se ouvia falar era dos pais, proprietários de fazendas, distribuindo armas para seus empregados, para evitar, à bala, a chegada dos invasores que pregavam por uma reforma agrária na marra.
Nesse clima, de defesa dos valores da propriedade e dos direitos, especialmente em um clima de guerra, que ativava a imaginação de todos os meninos, como nós, era fácil ficar ao lado dos golpistas.
Afinal, do lado deles estavam também políticos que prezávamos e com os quais tínhamos relações de parentesco, como José Maria Alkmin, que se transformaria no vice-presidente da chapa encabeçada por Castelo Branco, o primeiro militar eleito presidente pelo Congresso. E além dele, tinha JK, Pio Canêdo, Renato Azeredo.
Tudo bem, que tinha lá também um Carlos Lacerda e até Magalhães Pinto, mas ...
A noite de 31 de março começou com meu tio acompanhando entremeado pelo chiado do rádio de válvulas, a marcha das tropas de Juiz de Fora para o Rio.
Logo depois, a manchete da capa do Estado de Minas indicava que o presidente da Câmara era o novo presidente do país: Ranieri Mazzilli.
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Embora um primo distante tivesse sido eleito vice, os amigos todos da família apoiassem o golpe, minha vida de menino mudou pouco, até que em 68, o paraninfo da turma de minha mãe no curso de Biblioteconomia da UFMG, foi ameaçado de prisão ou preso, depois de seu discurso na colação de grau.
Aí é que minha ficha começou a cair, para o que contribuiu também as marchas que os estudantes faziam e suas passeatas, com estudantes da Faculdade de Direito subindo Augusto de Lima (onde morávamos) para se encontrarem com o pessoal da Engenharia que subia Espírito Santo e da Economia que vinha pela mesmo Espírito Santo.
Em algumas ocasiões, estudantes que participavam da movimentação e moravam no meu prédio, o Cauê, entravam em fuga pelo edifício e, como morávamos no primeiro andar, pediam nossa ajuda. E, como havia uma área de serviço externa que ligava os dois apartamentos do primeiro andar, ganhavam a área e saiam pelo apartamento vizinho, enganando os militares que os perseguiam.
Aquilo para mim era hilário. E emocionante.
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Mas, outros rapazes mais velhos provavelmente com idade próxima dos 18 anos, logo alcançaram a idade de prestação do serviço militar e, nos quartéis foram vítimas da lavagem cerebral responsável pela ordem unida. E, influenciados pelas lições da caserna, devem até hoje acreditar que os militares estavam acabando com a sujeira e a corrupção e salvando a pátria amada, mãe gentil.
Esses, terminado o serviço militar, ainda tiveram a oportunidade de entrarem em algum curso superior, e terminarem sua formação no período em que o Brasil atravessava o Milagre Econômico, o que assegurava emprego e bons salários. Pelo menos, para nós, filhos de uma classe média privilegiada.
Afinal, nunca é demais lembrar que não havia vagas para todos nas faculdades e o número de excedentes era muito elevado.
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Por tudo isso que descrevi, algumas passagens até para resgatar e registrar minha memória, é que entendo que para alguns, que depois foram cuidar de sua própria vida, dando pouca importância ao que acontecia à sua volta, o período militar não deve ter sido tão prejudicial e tudo de ruim que ele proporcionou, como mortes, torturas, etc. deve ter passado ao largo.
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De minha parte, eu mudei, estudando e aprendendo. Vendo que os golpistas militares de 64 eram, em geral, os mesmos que já tentavam desde a Revolta do Forte de Copacabana, conquistarem o poder, caso por exemplo, de Virgílio Távora. Vendo que os mesmos nomes, dos mesmos militares aparecerão depois, por ocasião de outros movimentos como o de Castelo Branco, Geisel, para citar apenas alguns, o que revela que os políticos ou vivandeiras que foram aos quartéis pedirem apoio para o golpe não sabiam com quem estavam lidando, nem as intenções de que os iria ajudar.
Depois que acompanhei a queda de Allende no Chile e, anos mais tarde, depois que assisti ao filme Missing de Costa Gravas, mostrando a participação do governo americano na implantação das ditaduras do continente, fui mudando minha opinião, até que não conseguisse que nada de positivo do regime pudesse ser argumento para que a ruptura institucional pudesse ser justificada, em qualquer tempo.
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Entretanto, pior para mim, pessoalmente, foi ter caído na lábia de um Chatô, o dono dos Associados, que para evitar a quebra de seu grupo, inventou uma Campanha "Doe Ouro para o Bem do Brasil".
Perdi ali uma figa de ouro. E nem queria financiar ao país ou à ditadura, ou ao Estado de Minas.
Queria apenas, naquela oportunidade, poder falar na rádio que entrevistava aos que estavam no Peps (ali na Bahia entre Augusto de Lima e Goitacases) fazendo suas doações.

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