quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A questão da crise da dívida americana e suas razões e o que pode advir daí

Wesley, um amigo e aluno, manda-me um email sugerindo que eu abordasse nesse blog a questão que o mundo todo acompanha com preocupação, relativa ao governo da maior nação do planeta estar atingindo o limite de seu endividamento.
Comecemos nossa tentativa de tratar o imbróglio lembrando que o teto da dívida nada mais é que o valor máximo que o governo americano pode tomar de empréstimo em dinheiro no mercado americano na busca de financiar seus gastos orçamentários.
Lembremos que esse teto está fixado em US$ 16,7 trilhões de dólares e que o valor, segundo matéria da Folha foi alcançado em maio passado, mas manobras de contabilidade criativa utilizadas permitiram que conseguíssemos chegar até esse mês de outubro.
Assim, começamos essa semana de 14 a 18 de outubro com o anúncio de que o governo americano teria em caixa a bagatela de US$ 30 bilhões de dólares para efetuar pagamentos que, conforme previsão oficial consumiria a totalidade dos recursos até o dia 17. Daí essa ser a data fatídica com que todos trabalham.
Outra informação importante dá conta de que são recolhidos, por dia, o valor de 6 bilhões de dólares de impostos, o que permitiria que o governo conseguisse, com a decisão de adiar o pagamento de alguns compromissos, chegar até o final do mês, quando então não haveria quaisquer recursos em caixa.
E que compromissos são esses que o governo deve liquidar até novembro ou no início daquele mês?
Em primeiro lugar, pelo significado, os juros da dívida pública. Outros pagamentos como toda a seguridade social, tipo pensões, seguros, pagamentos de veteranos, militares, empresas e pessoas contratantes do Pentágono, as parcelas do plano de saúde lançado por Obama como a menina dos olhos de sua gestão, e aprovado mas ainda não implantado totalmente. Ou seja: o governo não contará com recursos principalmente para os gastos que sustentam a vida de várias das famílias americanas, que seriam prejudicadas.
Importante: estourado o limite, torna-se difícil, senão impossível, a própria rolagem da dívida que estiver alcançando a maturidade, ou chegando a seu vencimento.
Uma coisa que, em geral, é pouco difundido aqui em nosso país, refere-se ao vultoso gasto que o governo americano tem, com programas de cunho social, como tíquetes alimentação para os mais pobres. Afinal, sem prestar a informação completa e devida sobre os gastos assistenciais do governo americano, torna-se difícil uma comparação com o mesmo tipo de gasto feito em nosso país, e praticamente impossível para que possamos concluir o quanto ainda temos a fazer, para tentar diminuir as desigualdades e as diferenças entre as classes sociais e sua capacidade de vida e reprodução.
Omitindo os números e valores gastos lá, nossa grande imprensa pode continuar dando voz e representando as nossas elites, em sua crítica nem sempre sutil, mas sempre insidiosa aos gastos públicos "desse bando de sem-vergonhas que integram o governo petista que está aí".
No fundo, creio que trata-se de outra questão, tanto aqui como lá. Ao gastar "muito" e "sem controle" para promover a redução das desigualdades e melhorar a qualidade de vida das populações menos privilegiadas, há um conta que deverá ser paga por alguém. E, ao menos no mundo desenvolvido, essa conta é paga pelas elites que têm maior capacidade contributiva.
Daí porque, lá como aqui, a lenga-lenga contra o excesso de gastos é sempre feita pelos representantes dos interesses das classes mais favorecidas e, ao menos lá, sempre acompanhada de propostas de solução que passam tanto pelo corte de despesas, quanto pela proposta de redução de impostos. Lá, proposta sempre apresentada pelo partido Republicano que representa os interesses dos mais ricos.
Convém lembrar que a lógica, embora seja a mesma que aquela adotada aqui, tem uma diferença: aqui os ricos não pagam o que deveriam, embora estejam sempre na dianteira, reclamando da pesada carga tributária. Reclamações que têm mais a ver com se antecipar a uma possível reforma que cobrasse deles, o que hoje é a carga de tributos que onera, pesadamente, ao povão. Ou à classe média, inclusive a ascendente, que constitui a parcela maior do volume de consumo e gastos que pagam os impostos mais importantes de nossa estrutura tributária: os impostos indiretos, como IPI e ICMS.
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Pois bem, deixemos a digressão para depois. Verifiquemos com os dados da matéria do site Último instante, o que são os tais pagamentos que devem ser feitos até o início de novembro e suas finalidades.
Até sexta-feira, devem ser pagos os serviços da Medicaid - o plano de saúde para a população de baixa renda, além de seguro-desemprego, pensões e salários de funcionários.
Em 25 de outubro, teriam de ser pagos os cupons de alimentos de que dependem 47 milhões de americanos.
Os contratos do Pentágono, por volta de US$ 2 bilhões é que fogem à lógica do gasto de assistência social, embora sejam o que permite gerar empregos nos fornecedores daquela agência militar.
No último dia do mês, o pagamento de 6 bilhões de dólares de pagamento de juros da dívida é outro gasto que foge àquela lógica, mas que por sua importância trataremos com destaque logo em seguida.
Em 1º de novembro, devem ser efetuados os pagamentos à Seguridade Social, Medicare, salários de militares, pensões de veteranos, prestações a deficientes físicos, além de outras ajudas e remunerações.
Lembremos que o salários dos servidores da administração federal não precisarão ser pagos, ao menos parcialmente, já que eles encontram-se em licença sem remuneração, situação provocada pelo fato de também não ter sido aprovada a proposta de orçamento para o ano fiscal. Sem orçamento, as despesas devem ser restringidas, e o corte de salários de funcionários da administração, não essencial,  é uma das primeiras medidas.
Pelo site esses últimos pagamentos somam os 58 bilhões de dólares. O que significa " o temor ... além de deixar famílias inteiras sem rendas essenciais para seu dia a dia, as agências de qualificação diminuam a qualidade da dívida americana, as bolsas desabem e seja colocada em sério risco a recuperação não só dos EUA, mas da economia global."
Embora séria, claro, a ameaça de uma recessão prolongada da economia americana e global, eu continuo achando mais problemático a questão da sobrevivência das famílias inteiras, sem renda para seu dia a dia.
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E qual é a questão por trás de todo o problema?
O jogo político, que lá como cá, preocupa-se mais com os interesses da classe política e dos verdadeiros detentores do poder, os donos do capital e do dinheiro, portadores do poder que conta de fato em nossa sociedade, o poder econômico.
Ocorre, que os republicanos, que têm maioria na Câmara, não aceitam que o programa de saúde de Obama, voltado para as populações mais pobres, seja colocado integralmente em execução. São igualmente contrários a aumentos de impostos para financiar esse tipo de gastos, embora não tenham se manifestado contra os gastos bancados com recursos dos impostos dos contribuintes para salvar os bancos e outras grandes empresas da derrocada, por ocasião da crise de 2007-2009.
É que, talvez, naquela oportunidade, os gastos eram para benefício dos interesses por eles representados.
Negociando ou usando a melhor expressão, chantageando a administração Obama, negaram-se a aprovar o orçamento de 2013-2014. E agora também se negam a aprovar uma extensão do limite do nível de endividamento que contemple um prazo mais dilatado.
Aceitam discutir propostas de extensão de limite que dure no máximo até fevereiro, quando então terão nova oportunidade de praticarem sua chantagem e reduzirem os benefícios para as classes menos abastadas.
Ciente de que não pode se deixar levar, mais uma vez pela chantagem dos republicanos, Obama não cede. E não aceita negociar prazos tão reduzidos, que somente iriam prolongar o drama.
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Aproveitando-se do discurso liberal, contrário a um governo gastador (sempre que estiver gastando em interesses que não os deles!) a última proposta agora é a de exigir um corte drástico de despesas públicas, que atingiriam muito mais as classes mais pobres.
Com isso, submeteriam o governo Obama a seus caprichos. Situação que faz com que as pesquisas de opinião pública demonstrem que nunca os políticos foram tão mal avaliados. E que os republicanos são apontados pela grande maioria dos consultados, como os responsáveis pela crise que se prenuncia.
Mas, como ainda temos tempo, até a data de 17 fixada pela própria administração federal, não dá para fazer apostas do que pode acontecer.
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Dá para imaginar o que aconteceria com a economia americana, com corte de despesas do governo, um dos gastos mais influentes para a composição do PIB, e com a perda de capacidade e poder aquisitivo das famílias, que teriam de reduzir seus gastos de consumo. O que geraria queda de demanda agregada, queda de produção e desemprego.
Também internamente, seriam prejudicados os que sobrevivem às custas do pagamento de juros da dívida pública, embora esses com menor impacto.
Mas, e no exterior, qual o efeito do default americano?
É bom lembrarmos que, depois de Bretton Woods e da instituição do Sistema Monetário Internacional em 1944, o tipo de câmbio instituído, fixo, se baseou na moeda americana como lastro. Enquanto o dólar era considerado conversível em ouro, à paridade fixa, as demais moedas eram atreladas a um valor fixo estabelecido em relação à moeda americana.
Com esse padrão câmbio ouro-dólar, a moeda americana transformou-se, como era de se esperar, em reserva internacional dando aos Estados Unidos muito mais poder que qualquer corrida armamentista ou produção de artefatos nucleares lhe dariam.
Símbolo internacional da riqueza, o dólar passou a ser a moeda usada por todos os demais países do mundo como reserva de valor, ou a representação abstrata da riqueza universal.
Situação que não durou muito. Afinal, com a mesma importância, mas com a vantagem de gerar rendimentos, como o pagamento de juros, a maior parte das economias passou a preferir manter suas reservas em títulos do tesouro americano, denominados em dólar.
E todas as principais economias mundiais mantém reservas em dólar. Segundo dados da Folha, 62% das reservas de todos os Bancos Centrais são em dólares.
Só a China e o Japão, maiores credores externos dos Estados Unidos, e maiores detentores desses recursos detêm 43% dos títulos.
O Brasil detém hoje 4,6% dos títulos, acompanhado por Taiwan, Bélgica, Suíça.
Todos seriam afetados pela perda de rendimentos, no caso de um default e mais ainda pela desvalorização que tais títulos sofreriam no mercado, em razão da perda de qualidade dos títulos.
Com as agências de rating já anunciando um possível rebaixamento das notas atribuídas aos títulos americanos, hoje com a maior avaliação, alguns investidores institucionais poderiam ficar impedidos de aplicarem os percentuais que hoje aplicam nesse tipo de ativo.
Embora não seja nunca interessante tentar fazer previsões - elas sempre falham - parece-me que uma queda da avaliação dos títulos americanos provocaria uma corrida para o ouro, e talvez algumas commodities. Mas, nada é certo. Alguns títulos de outros países poderiam ser também procurados na busca por uma diversificação das carteiras, mas quais países, levando-se em conta a crise experimentada pela região do euro?
Com relação ao crescimento econômico, é certo que um aborto da recuperação americana ou uma recessão naquele país teria consequências para a redução do comércio mundial, com prejuízo para China e outras economias asiáticas.
Vendendo menos para seu principal cliente, a China poderia também reduzir suas compras de países fornecedores de insumos. O que afetaria a nós brasileiros.
Por outro lado, a economia brasileira poderia tornar-se um dos destinos de aplicações desses capitais, em busca de redução de riscos para aplicação.
Nesse caso, o influxo de capitais poderia tanto beneficiar nosso país, e permitir MAIS um espaço para a realização das reformas estruturais consideradas necessárias para romper os entraves que impedem a retomada mais robusta de nosso crescimento ou então poderiam, como o artigo de João Augusto de Castro Neves, publicado na Folha de hoje (caderno B - Mercado, p. B6) apenas tornar menos imprescindíveis, aos olhos dos responsáveis pelas definições estratégicas em nossa economia, as reformas que os mercados tanto pedem.
Especialmente, por que o ano que vem é ano eleitoral e as reformas poderiam afetar a imagem e popularidade que o governo poderia herdar, caso novamente a situação internacional viesse a se mostrar favorável.

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