Poder-se-ia alegar que é por mero despeito ou medo. Seja de descobrir que meu texto é muito inferior, seja para evitar que todos que me honram lendo meu blog, começassem a pedir que eu deixasse esse espaço de minha manifestação para quem se manifeste de forma melhor.
Por esse motivo, quando encontro um texto ou opinião, ou artigo que me faz querer compartilhá-lo, costumo transcrever apenas partes, não o todo. Claro que sempre faço a referência para que aqueles que o desejarem possam ter acesso a todo o conteúdo.
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Mas não é o que ocorre dessa feita. Primeiro por que muito me incomodou uma série de postagens, com curtidas e comentários elogiosos, que vi no facebook, logo depois de proclamado o resultado eleitoral, com a vitória de Dilma. Tratava-se de uma frase, reproduzida à exaustão, que falava dos porcos, e de como eles babam com a mão que os alimenta, mesmo que, à la Augusto dos Anjos, seja também a mão que os apedreja (ou mata).
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O pior de tal frase, acho, era estar sempre nas redes associada a outros comentários que demonizavam o povo nordestino, por terem dado a maioria esmagadora de seus votos, à reeleição da presidenta e o PT com seus programas assistencialistas.
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Pois bem, Fernando Simões, colega do Banco e grande amigo é nordestino. Baiano. E também ficou deverasmente incomodado com tais comentários e apoios.
E mandou-me um texto para que, caso eu gostasse o publicasse em meu blog.
Correndo o risco de depois ser cobrado de deixar só o Fernando escrevendo nesse espaço, eis o texto. Com que concordo em gênero, número e grau. Em sua beleza e poesia.
Que todos possam apreciá-lo.
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Não consegui trazer para publicar uma tabela que encimava o texto, mostrando os votos tanto de FHC quanto de Lula, nos anos de 1994, por estado nordestino, cuja fonte é o TSE.
Sobre porcos, pérolas e nordestinos
(O escrevinhamento de um Nordestino-pertencente a um
Nordestino-envergonhado)
Em 1994, Fernando
Henrique Cardoso venceu Lula no Nordeste na eleição para presidente pelo placar
de 58,67% a 28,18% (67,55% dos votos válidos) e depois, em 1998, por 48,19% a
29,95% (61,67% dos votos válidos). Antes, Collor havia derrotado Lula, em 1989,
com significativo apoio do Nordeste. Nas três ocasiões votei em Lula, portanto,
estive do lado dos derrotados (como dizemos lá na terrinha: “peguei no cabo da
raposa”).
O Nordeste foi
protagonista nas quatro vitórias presidenciais do PT (2002, 2006, 2010 e 2014).
Assim como, a região fora determinante nas vitórias de Getúlio Vargas (1950) e Juscelino
Kubitschek (1956). Nasci em abril de 1963, mas a história nos conta sobre a
relevância dos governos de Vargas e JK. Votei no PT quando o partido elegeu
seus representantes. Assim, nas derradeiras eleições, meu lado venceu (“soltei
o cabo da raposa”).
Naturalmente, estou
satisfeito com os últimos resultados das eleições presidenciais e me aborreceram
as derrotas que o nordeste impingiu ao meu candidato. Além dessas derrotas, também
me aporrinharam as adesões de Gonzagão à ditadura militar e de Jorge Amado à
ACM. Também as críticas ácidas (e no meu entender, injustas) de João Ubaldo a
Dilma contrariaram as minhas expectativas em relação ao posicionamento político
do meu escritor baiano mais querido. (Poderia passar um dia inteiro relatando
dessabores semelhantes, mas creio que esses já sejam suficientes ao meu
intuito). Todavia, em nenhum momento passou por mim a ideia de desqualificar o povo
nordestino ou de diminuir (um punhado que fosse) os talentos do “Rei do Baião”,
do Amado Jorge (outrora comunista), do criador da obra prima “Viva o povo
brasileiro” ou de qualquer outro adorável nordestino que tenha assumido posição
que me tenha desgostado.
O fato de alguém nascer
em um lugar (ou mesmo crescer nesse lugar) não significa que esse alguém
pertença a esse lugar. O local de nascimento é uma ocorrência independente da
vontade ou da ação do indivíduo, obviamente. A nacionalidade ou naturalidade é
o resultado da loteria geográfica. O pertencimento, ao contrário, é fruto de um
processo contínuo de percepção crítica, identificação e comprometimento. É,
portando, uma construção autónoma, própria do livre arbítrio. Ninguém escolhe
onde nascer, mas pode decidir (mesmo que intuitivamente) a que “lugar”
pertencer.
A percepção
crítica nos dá a capacidade de recolher, ao longo do nosso existir, as pérolas
que nos encantam (acontecimentos, testemunhos, tradições, valores éticos,
metafísicos e estéticos etc.) e guardá-las no nosso alforje cultural. A coleção
dessas pérolas é a identidade cultural de um indivíduo. A cultura de um
povo é conjunto das pérolas mais comuns nos alforjes dos indivíduos que o
compõem. E o comprometimento é defesa dessa riqueza, acumulada em forma
de pérolas. Portanto, um indivíduo faz parte de um dado grupo se, além das
pérolas que lhe são mais caras, ele é também guardião das pérolas mais comuns. Se
um indivíduo desconhece essas pérolas comuns não há como defendê-las, assim com,
se perceber parte do todo. E não se consubstancia o pertencimento. O pertencimento,
portanto, não se antagoniza com a individualidade, já que não há dois alforjes
idênticos, senão, faz parte dela.
Todos os indivíduos são
capazes, em alguma dimensão, de produzir pérolas. Assim, a convivência, a
observação, a comunicação e, sobretudo, a solidariedade e a empatia enriquecem
a todos, fazendo aumentar a oferta no mercado de pérolas, que tem como moedas tão
somente o tempo e o querer. E é por isso que há uma relação direta entre
proximidade espacial e semelhança de alforjes, fazendo surgir a cultura local,
que é dinâmica, se transformando a cada novo conhecimento endógeno ou importado.
“O povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe” (Gilberto Gil). Assim,
o aumento do saber é também o aumento do querer e do buscar.
Quando um brasileiro
desdenha, desqualifica ou ofende o POVO NORDESTINO pelo simples fato de ele ter
majoritariamente feito uma opção (a partir da sua realidade) que difere da
escolha de uma elite econômica (egoísta e perversa) – e que dessa forma explicita
o desejo de estabelecer uma aristocracia de fato em um ambiente de democracia
de direito –, intuo que, além da incapacidade da empatia, a ignorância lhe
serve como um poderoso entorpecente: fazendo com que um tolo preconceituoso
(incapaz de superar a mixórdia/indolência cognitiva) se perceba sábio quando na
verdade é só um idiota instruído (quando muito).
Quando um nativo do
nordeste expõe publicamente sua “vergonha” também pelo fato de os seus
conterrâneos (de direito) não adotarem suas certezas encasteladas – chegando ao
ponto de nos comparar a porcos famintos, adoradores dos nossos (supostos) algozes,
por também serem eles quem nos alimentam –, constato que esse o Nordestino-envergonhado,
além de ter sido acometido pelos dos males da ignorância e do egoísmo já
expostos, é absolutamente desprovido do sentimento de pertencimento ao
Nordeste. Seu alforje não contém nossas pérolas comuns. Senão como explicar a
absoluta falta de solidariedade, empatia e respeito aos seus irmãos. Como
explicar o carecimento de espírito democrático para aceitar a vontade da
maioria dos que deveriam ser seus pares. E ainda, como explicar a ausência no
irmão da altivez inerente ao POVO NORDESTINO.
Assim, irmão Nordestino-envergonhado,
eu, um Nordestino-pertencente, lhe trago uma boa nova: não há mais porque
se envergonhar! Você até pode ter nascido no Nordeste, por obra e graça (ou
desgraça, a depender do observador) da loteria geográfica, mas,
definitivamente, o irmão não pertence ao Nordeste. Pois, “só é [nordestino]
quem trás no peito o cheiro e a cor da sua terra, a marca de sangue dos seus
mortos e a certeza de luta dos seus vivos”[i]
(Vital Farias).
E, assim sendo, o irmão
está alijado do sentimento da vergonha. E, por conseguinte, o irmão está livre
e habilitado para galgar um pertencimento mais “nobre”. E “Que Deus te guie
porque eu não posso guiar” ou “Que [Joaquim Nabuco o] resgate”[ii]
(Caetano Veloso). Só não ofereça as nossas pérolas aos porcos reacionários e
racistas, tão corriqueiros ultimamente nas mídias sociais, pois elas são o
tesouro dos Nordestinos-pertencentes.
Axé a todos e Inté
intão (Uai sô, tô vivendo em Belzonte e já ajuntei um cadin de pérolas de cá,
mas meu alforje é grande e não precisei e nem vou precisar me desfazer das
antigas)!