quinta-feira, 11 de novembro de 2010

A peneira e o sol

Antigamente era a peneira do vestibular. Vários exames. Várias faculdades. A farra dos cursinhos preparatórios e suas turmas especiais, para cá e acolá: Federal e Puc, GV e USP ou Unicamp e São Carlos.
A situação se reproduzia e rendia - BONS - dividendos e lucros em todo país.
Do ponto de vista do aluno, o desespero.
Em minha época, já remota, 8 provas, 4 dias, 36 questões por tipo de prova, todas realizadas sob o conforto ... do sol escaldante de um estádio de futebol.
Em meu caso, o Mineirão. E eu lá, sentado na virada do estádio, no campo onde ficava postada a torcida do América, esperando que às 9 horas da manhã acontecesse o milagre, do sol baixar.
E o milagre se fez e fiz a prova sob a sombra do cimento.
Depois trocaram o local da prova e o Vestibular passou a ser feito, ao menos para os concursos mais concorridos, caso do ensino público e gratuito das Federais e Estaduais, em salas de aula. Dois dias, para as 8 matérias.
A cobrança nas instituições de ensino superior, particulares, passado algum tempo, passou a se restringir apenas a 4 matérias, aquelas mais vinculadas ao curso específico demandado pelo aluno.
Nas faculdades oficiais, a prova tomou a feição de concurso em duas etapas: na primeira, as provas todas de todas as matérias e conteúdo do ensino médio. Aos classificados nessa primeira etapa restaria a prova de matérias específicas, algumas até com questões objetivas.
Do ponto de vista do ensino, as escolas secundárias se preocupavam, apenas, em ensinar aos alunos a marcar o x na opção correta. O raciocínio lógico foi substituído pela preocupação com a identificação de macetes. As apostilas tomaram o lugar dos livros. E o conhecimento foi substituído pela capacidade de identificar o tipo de resposta mais adequado para aquele tipo de problema.
Em algumas instituições, até cursos foram fornecidos aos professores, ensinando-os a elaborarem as provas no mesmo estilo - tosco e pouco avaliativo, do concurso vestibular.
Obter a aprovação na prova era o objetivo, mesmo que isso não representasse acréscimo de conhecimento e desenvolvimento cognitivo, cultural ou intelectual.
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Faço todas as reminiscências, para mostrar como a preocupação com a qualidade do ensino e do aprendizado por parte do aluno foi, ao longo do tempo, alterando e melhorando as condições do concurso seletivo, muitas vezes equiparada à imagem de um autêntico funil.
Em certo momento, até para se livrar da imagem do gargalo, a preocupação acarretou a abertura indiscriminada de faculdades e cursos superiores isolados, que se caracterizavam por serem grandes supermercados comercializando diplomas.
Mas, ao menos desafogava a concorrência acirrada das Federais e PUCs, e mais uma meia dúzia de Instituições que ainda tinham a preocupação com a educação e não apenas com o faturamento.
Outra característica desses arremedos de escolas era que recebiam, em geral, aqueles alunos que poderiam ser classificados como analfabetos funcionais. Alunos de péssima formação e sem qualquer base, incapazes de interpretarem um texto mais elaborado. Pessoas que apenas sabiam ler e escrever, às vezes até arranhando algum outro idioma. Na parte de cálculo, sabiam algo além das quatro operações, pero no mucho.
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No entanto, não há como negar que alguma preocupação com a qualidade estava presente, o que levou à introdução de mudanças nas provas, já comentadas, e que livraram parcialmente, os alunos do sorteio dos xizinhos.
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Em todo esse tempo, houve tentativas de melhora do acesso ao nível superior de educação e tentativas de dar maior condição de igualdade na disputa por vagas nas instituições de ensino, o que é inegável.
Mas, como professor universitário, minha experiência indicava uma queda constante, sustentada, perene da qualidade do curso e até mesmo das matérias que eu lecionava.
Não por culpa de um envelhecimento natural, ou cansaço, ou por ter perdido o viço e o tesão da sala de aula, que estes continuam ...
O fato é que, se as mudanças efetuadas tinham como preocupação possibilitar o acesso de milhares de estudantes ao curso superior, tendo alcançado êxito nesse objetivo,  não houve a mesma preocupação com a qualidade do material humano que passou a chegar a nossas mãos para ser objeto de nosso trabalho, qualidade cada vez pior. E olhe que, propositadamente usei a expressão ser objeto de nosso trabalho, porque pretender chamar essa massa de alunos que passou a ser formada de sujeito de seu próprio processo de aprendizagem seria querer tapar o sol com a peneira, literalmente.
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Em meio a toda essa preocupação e toda essa situação, surge o ENEM.
Na minha opinião, destinado a substituir os vários concursos de vestibular, por um só. Único, amplo, geral, irrestrito.
E que, por seu gigantismo, não poderia transmitir a certeza de ser coisa boa. Ou confiável.
Talvez nem fosse essa a intenção do exame, originalmente pensado para servir de instrumento de avaliação da qualidade de nosso ensino fundamental e médio no país, de aferição das principais necessidades e carências.
Mas foi num grande vestibular que ele acabou se transformando, dada a pressão do governo para referendá-lo e a substituição, daí decorrente, do concurso vestibular na maioria das escolas públicas pelo resultado do ENEM.
Então, de grande exame de aferição de qualidade e possível correção de rumos, o ENEM passou a ser utilizado, além de substituto do Vestibular, reduzindo as várias chances que os candidatos tinham de tentar várias Faculdades, como a certificação da qualidade de escolas privadas e até de cursinhos preparatórios, que fizeram da divulgação de seu resultado final, a peça de resistência de suas campanhas publicitárias, na perseguição de novos alunos .... e seus dinheiros.
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Do exame de aferição da qualidade do ensino, que suponho deveria ser feito, até em caráter regional, respeitadas variações culturais, etc., em especial no tocante à questão da redação e de seus temas, nada.
Da possibilidade de o resultado dar curso a uma profunda alteração de conteúdo, métodos de aula e de transmissão de conhecimento, etc. nenhuma notícia.
Essa parte, se continua sendo preocupação, passou a segundo plano. Pelo menos essa é a impressão que tem sido passada a todos nós.
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Quanto ao processo vestibular, o melhor e mais correto na minha opinião, seria um exame do currículo e da vida escolar que, para não ficar muito no nível do subjetivismo do avaliador, poderia constar de uma prova anual, ou outros tipos de produções de avanço do conhecimento dos alunos, nos moldes do vestibular seriado.
Em minha opinião, esse sim, funcionaria menos mal como avaliação dos alunos e de sua capacidade de adequação às exigências de um curso superior, tanto em termos intelectuais, quanto emocionais, etc.
Claro que, isso não significa que o próprio vestibular seriado não devesse passar por avaliação e, se necessário, algum tipo de reestruturação.
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Mas não. O governo aferrou-se ao ENEM, considerado agora pelo presidente Lula, como um grande êxito.
O que significa que o presidente falava da idéia, ou perdeu o timing. Especialmente por seu próprio reconhecimento de que, se houver necessidade, far-se-á uma ou duas novas provas do concurso, cujas provas apresentaram - MAIS UMA VEZ-  tantos problemas.
Menos mal que o presidente admite que se há erro, melhor recomeçar que tentar remendos.
Porque a postura correta e ética é essa: anular tudo e fazer novo processo de avaliação nesse ano.
Bastante diferente da postura do Ministro e sua equipe do Ministério da Educação que, ao tentar negar o óbvio de suas falhas,  apenas tenta tapar o sol com a peneira.

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